A 8 de Novembro de 2009, um público emocionado, entre o qual se contava a sobrinha (Laura) de Federico García Lorca, acolheu oito mulheres ciganas a representar La Casa de Bernarda Alba. Essas mulheres agora actrizes não sabem ler nem escrever. Donas de casa no bairro de lata El Vacie (talvez a “chabola” maior e mais antiga da Europa), em Sevilha, quando deixam a sua cidade para prosseguir esta tournée de êxito, preocupam-se é com as condições em que ficam os seus maridos e filhos. Condições – ratos e imundície – a que voltam elas mesmas quando acaba mais uma série de representações. A encenadora é Pepa Gamboa, do TNT – Centro Internacional de Investigación Teatral, que alberga a companhia de teatro Atalaya na capital da Andaluzia. Calhou-nos a sorte de ver tudo isto, agora em Madrid, no Teatro Español (ontem, 13 de Março). Marga Reyes, com o papel de Poncia, é a única actriz profissional (e a única não pertencente à comunidade cigana) em cena, representando no palco o património de teatro social e experimental da companhia.
A peça La Casa de Bernarda Alba, de Federico García Lorca, escrita em 1936, terminada um mês antes do fuzilamento do poeta pelos Falangistas, é por demais conhecida. É um estudo sobre a condição da mulher nas aldeias de Espanha, sobre a repressão social (de que podem mulheres ser vítimas e outras mulheres agentes), a repressão sexual (com o homem a polarizar medo e desejo, a par com o desrespeito machista, e a ausência – nesta peça os homens nunca aparecem em carne e osso), uma ordem tradicional que coloca as aparências acima das pessoas (a fala de Bernarda perante cada evidência da desgraça é “no pasa nada”). Tendo Lorca sido um amigo dos ciganos, uma das comunidades mais perseguidas e discriminadas, ainda hoje, mesmo nesta Europa que se julga muito “social”, a escolha desta peça para dar esta oportunidade a estas mulheres foi muito acertada.
Rocío Montero faz Bernarda Alba, um corpo grande e uma voz poderosa a suportarem uma dose extra de realismo: deve ser a primeira actriz a representar Bernarda que tem mais filhos (7) do que a própria personagem (5). Carina Ramírez, de 23 anos, faz de Amélia. Com a sua graciosidade, já se vê a ficar como actriz. Sonia da Silva faz de Adela e nesse papel dança maravilhosamente. Mari Luz Navarro faz María Josefa, a mãe louca de Bernarda, divertidíssima. Nunca tinham ido ao teatro antes, nem tinham ouvido falar de Lorca – e agora mostram-nos quanto é possível levar a efeito quando há pessoas que o sonhem e tenham coragem para deitar mãos à obra.
É certo que a encenadora tomou liberdades com o texto para conseguir uma peça o mais próxima possível daquilo que aquelas actrizes melhor poderiam compreender e assumir. Trata-se, nesta versão, de uma sequência de quadros, com muita música e dança pelo meio, que se vê melhor se se conhecer algo da história previamente. Mas a forças das mulheres que interpretam é enorme, na alegria e na dor, e isso passa para a sala com muita nitidez.
Apesar de este espectáculo tem tido forte repercussão política (foi tomado como um dos acontecimentos culturais relevantes da “Presidência Espanhola da União Europeia” e do Ano Europeu de Luta contra a Pobreza e a Exclusão Social), Pepe Gamboa, a veterana encenadora, conhecida por insistir na fusão entre o teatro e o flamenco, sublinhou desde o princípio que seria inapropriado ver este espectáculo apenas como uma acção social: trata-se de um acontecimento artístico que vale como arte. Tendo assistido, achamos que ela tem razão.
No domingo 7 de Março, depois da função, as actrizes e a equipa apresentaram-se a um encontro com o público, a que comparecemos. Rocío, a Bernarda, falou pelos cotovelos, com grande presença, clarividência e fluidez. Só se calou por uns momentos, quando se emocionou ao lembrar quando, numa das saídas do grupo, o marido lhe telefonou a dizer que estava a chover e a casa inundada. Mas explicou que o marido se estava a sair muito bem da tarefa de tratar dos filhos e dos netos, e da casa em geral, quando ela estava fora. Quando lhe perguntaram a razão do seu sotaque aportuguesado, elas respondeu que o sotaque era galego, por ter família em Santiago de Compostela. E contou dos nervos no dia da estreia. E mostrou como estavam felizes por terem chegado àquele ponto.
Num certo sentido, nada disto vai mudar o mundo. Nesse encontro com o público, um dos elementos da companhia (não cigano) contou que, na noite anterior, depois do espectáculo, tinham ido a um café da zona para beber algo – e os empregados tinham-nos posto na rua. Livro de reclamações, uma salganhada até às tantas – as coisas não mudam no palco. Mas, noutro sentido, as coisas vão mudando devagar. Hoje, manhã cedo, deparámos com algumas das actrizes desta peça às compras n’El Rastro. Que excitação, ver aquelas actrizes ali no meio do povo! Acho que foi a primeira vez que vi ciganas a comprar, em vez de estarem a vender. Pequena inversão, comparada com tantas coisas que precisam tanto de maior mudança.
Um "resumo" do espectáculo em vídeo:
Rocío Montero, que faz o papel de Bernarda, dá aqui um testemunho que não carece de outra interpretação. (Este vídeo faz parte da campanha Esto solo lo arreglamos entre todos, uma campanha promovida designadamente pelo associativismo empresarial, que defende a necessidade de injectar uma atitude positiva na cidadania como meio de sair da crise.)
(Todas as fotos são da companhia. Só é nossa a foto do encontro com o público. É fraquinha como foto [e clandestina] mas é memorial.)