Canção dos Xutos e Pontapés está a ser transformada em manifesto contra Sócrates.
"Sem Eira nem Beira", uma música do novo álbum dos Xutos & Pontapés está a ser lida por certos meios como um manifesto anti-Sócrates. Fontes da banda já vieram dizer que "nem por isso". Esta agitação com este assunto não me parece um facto menor. Parece-me até bastante revelador da mentalidade que se instalou numa nova classe de manipuladores das mentes. Sinto, pois, a obrigação de me declarar:
primeiro, que a canção em causa é evidentemente de protesto social, de denúncia de uma série de fenómenos que desagradam a toda a gente bem formada, e que o "apelo" ao "senhor engenheiro", contido no refrão, aponta para o governo como alvo da contestação - como teria de ser, porque uma canção não é um tratado de sociologia com subtilezas, é uma canção que tem de colocar as coisas na sua forma mais mobilizadora e entendível;
segundo, que muita da boa música que se tem feito, em Portugal e no mundo, há muitos anos, é precisamente de protesto e de denúncia social, e os Xutos têm entrado mais do que uma vez por aí - e ainda bem que tudo isso é assim;
terceiro, que a suposta tentativa, por parte de apoiantes do governo (nas câmaras, por exemplo) de calar este tipo de intervenção artístico-social, seria uma acção ridícula, mesmo que essa tentativa passasse "apenas" por tentar ignorar a banda na contratação para concertos;
quarto, que a tentativa de canalizar partidariamente (contra o PS, neste caso) esta canção de conteúdo social, transformando-a numa "peça de oposição", seria igualmente ridícula, por ser tão redutora como a acção "castigadora";
quinto, só mentes pequeninas, que não vêem para lá da sua esquina de pequenos ódios, é que se atrevem a tentar manipular a bendita liberdade dos artistas para fins directamente eleitoralistas, confundindo os planos - e, desse modo, mostrando que o seu afã propagandístico é menos subtil do que o do próprio António Ferro.
Pobre país onde tudo é reduzido a um único ponto, uma única questão, uma única vendetta para todos os grupos de rancores.
Anda tudo do avesso
Nesta rua que atravesso
Dão milhões a quem os tem
Aos outros um passou - bem
Não consigo perceber
Quem é que nos quer tramar
Enganar
Despedir
E ainda se ficam a rir
Eu quero acreditar
Que esta merda vai mudar
E espero vir a ter
Uma vida bem melhor
Mas se eu nada fizer
Isto nunca vai mudar
Conseguir
Encontrar
Mais força para lutar...
(Refrão)
Senhor engenheiro
Dê-me um pouco de atenção
Há dez anos que estou preso
Há trinta que sou ladrão
Não tenho eira nem beira
Mas ainda consigo ver
Quem anda na roubalheira
E quem me anda a comer
É difícil ser honesto
É difícil de engolir
Quem não tem nada vai preso
Quem tem muito fica a rir
Ainda espero ver alguém
Assumir que já andou
A roubar
A enganar
o povo que acreditou
Conseguir encontrar mais força para lutar
Mais força para lutar
Conseguir encontrar mais força para lutar
Mais força para lutar...
(Refrão)
Senhor engenheiro
Dê-me um pouco de atenção
Há dez anos que estou preso
Há trinta que sou ladrão
Não tenho eira nem beira
Mas ainda consigo ver
Quem anda na roubalheira
E quem me anda a foder
Há dez anos que estou preso
Há trinta que sou ladrão
Mas eu sou um homem honesto
Só errei na profissão