Aqui há já mais de cinco anos, num outro blogue que na altura editava, e arrastado por outro assunto, publiquei um texto de memória, memória de uma pessoa que estimara e que nos deixara uns anos antes. Hoje, foi com emoção que recebi uma mensagem de um velho amigo da Charlotte, que descobriu, numa busca na net, por via desse meu singelo apontamento, onde está ela agora. Por homenagem à amizade, inclusivé aquela que perdura para lá das separações forçadas, e aos sentimentos que a internet pode, apesar de tudo, ajudar a viver, republico esta homenagem pessoal. Fazendo a Charlotte viver uma e outra vez para além do seu passamento.
Na minha anterior entrada intitulada Política, Ciência, Linguagem (e Memórias), era feita uma referência específica ao papel desempenhado pela delegação da Suécia numa determinada negociação comunitária tendo Bruxelas por palco. A minha amiga Charlotte von Redlich era nessa altura a chefe da delegação sueca. Um ano depois da negociação mencionada naquela entrada, cabia à Charlotte presidir ao grupo de trabalho (durante o primeiro semestre de 2001). Mas a Charlotte entretanto contraiu uma "doença prolongada". Mesmo assim, não abandonou o seu posto. A partir de certa altura presidia às reuniões com uns tubinhos de plástico que lhe entravam pelo nariz, vindos de um dispensador de morfina que carregava consigo à cintura. Nessa altura, o seu brilho intelectual já não era o mesmo, mas a sua gentileza continuava intacta. E a sua coragem aparecia com uma nitidez que não esperávamos. No intervalo entre duas reuniões, faleceu. Foi por ela que, pela primeira e última vez, chorei abertamente numa reunião do Comité dos Representantes Permanentes, sentado à mesa das negociações ao lado da Representante Permanente Adjunta portuguesa, que eu assessorava num certo ponto da ordem do dia. Nessa ocasião escrevi o seguinte texto.
À Charlotte von Redlich.
De nada me vale agora / ter aqui à mão o teu número de telefone, telecópia, endereço electrónico, / @ ministry_of_foreign_affairs_dot_se / porque não me irás responder / nem ninguém aceitará dizer-me que vens mais tarde ou talvez amanhã / e não sei como procurar outros caminhos para te falar. / Vieste do largo país antigo império do norte, / como eu venho do pequeno país antigo império do sul, / mas pela tua humanidade podias ter vindo de qualquer canto do mundo / por onde andaste / e espero que de algum modo ainda andes. / Cruzaste-te aqui / connosco / onde nos deste batalha / e rias-te de gozo quando fazias uma pergunta difícil / que sabias que nos ia atrapalhar, / mas antecipávamos que apenas lançavas os dados de rir-te com gosto / quando nos desembaraçássemos para te dar a resposta apropriada, / porque nitidamente para ti não haveria mundo / sem perguntas a fazer e respostas a procurar além das palavras / num perpétuo partir de novo. / Não nascemos na tua terra grande / onde podias às vezes ver o sol da meia-noite / e às vezes ver um dia todo breu, / e não somos, por isso, naturalmente dos teus, / mas estamos em crer que se nos esforçarmos para o merecer / poderás tu ser dos nossos, / porque aquela história de ser património da humanidade / certamente não vale apenas para pedras bonitas e antigas / e para nomes que vêm nos jornais de todas as capitais, / mas mais justamente ainda há-de valer para os nobres de todos os dias. / Andamos aqui entre ondas e vagas quotidianas / e paramos tão pouco para olhar nos olhos dos outros / e um dia reparamos que ainda não conhecíamos os traços dos rostos vizinhos: / confessa que partiste agora para nos avisar disso, enquanto é tempo. / Oro para que continues a olhar pela nossa humanidade / e se multipliquem as pessoas luminosas, o teu legado. / Não partas, Charlotte. / Pelo menos não partas hoje, / que ainda temos coisas a aprender contigo.
Porfírio Silva, Bruxelas, 29/03/2001