25.4.09

guerras da memória (*)


Há quem pense que a memória é uma espécie de "armazém" onde estão guardadas umas entidades ou registos, as memórias, e que recordar é ir buscar tais registos de modo a poder recuperar algum tipo de descrição objectiva do que se passou em algum momento no passado. Muito se tem estudado, ao nível da memória individual, como essa ideia é simplista, mesmo errada. O que recordamos depende muito dos processos de reelaboração que estão virados mais para as nossas perspectivas actuais do que para um passado histórico objectivo a que poderíamos aceder como quem "vai buscar coisas ao armazém". Também ao nível da memória colectiva se tem procurado compreender esses mecanismos em que o passado (como nos lembramos do passado) é mediado pelo presente e pelas nossas perspectivas. Damos de seguida um exemplo.

No final dos anos 1970, poucos anos depois da derrota americana no Vietname, foi decidido construir um Memorial aos respectivos Veteranos. O concurso de projectos para o efeito foi ganho por Maya Lin, uma estudante de arquitectura de 21 anos que assim ficou em primeiro lugar num lote imenso de 1421 projectos apresentados.
O Memorial viria a ser construído em Washington, D.C. segundo a ideia de Maya Lin: uma enorme estrutura de granito polido com a forma de um V alongado, semi-enterrada, com a inscrição dos nomes dos mortos na guerra. Uma espécie de grande lápide tumular.





Mas a polémica já tinha sido incendiada: alguns, nomeadamente veteranos, consideravam que o Memorial partilhava a visão crítica da guerra que tinha alimentado enormes movimentações durante o decurso da mesma. O “V” parcialmente enterrado lembrava uma horrenda cicatriz e parecia recordar mais as fracturas causada na sociedade americana pela participação na guerra do que propriamente o esforço dos militares. O projecto inicial apresentado por Lin (imagem seguinte) talvez pudesse de facto ser lido desse modo.



Criaram-se organizações contra e a favor das diferentes visões do que devia ser o memorial. O resultado foi a construção de uma “adenda” ao memorial: uma estátua mais convencional representando três soldados combatentes, de origens diferentes: um branco, um negro, um hispânico.



Contudo, esta guerra da memória não ficaria por aqui. Gleena Goodacre viria a suscitar a questão: então e as mulheres que também fizeram a guerra? Dessa questão nasceu o terceiro componente do memorial, já no princípio dos anos 1990: o Memorial às Mulheres na guerra do Vietname.



Este é um dos exemplos que William Hirst e David Manier (**) dão do que se chama “guerras da memória”, que surgem quando memória e identidade se embrenham fortemente: quando a forma como recordamos o passado tem muito a ver com o que queremos no presente e no futuro para a nossa comunidade.

(**) HIRST, William, e MANIER, David, “Towards a psychology of collective memory”, in Memory, 16(3), pp. 183-200 (2008)



(*) [Este texto já tinha sido publicado aqui, a 18 de Junho de 2008. Republico-o, agora, numa reflexão que acho apropriada a uma comemoração do 25 de Abril. É que já há tantos vinte-e-cincos-de-abril a serem comemorados, que algum significado isso há-de ter...]