30.4.09

Arqueologia pessoal


(Republico aqui um texto cuja versão original apareceu no extinto, mas ainda disponível para consulta, Terra da Alegria, a 7-Jun-2004. Fui "convidado" nesse blogue durante algum tempo, tendo parado a colaboração por indisponibilidade de tempo da minha parte. Nem desertei nem fui saneado - apesar de estar num "ambiente" que não devia ser naturalmente meu, apesar de me sentir lá muito bem.)

Tendo aceite (irreflectidamente?!) colaborar num espaço estruturado por católicos, interroguei-me de imediato: porquê, sendo assumidamente agnóstico, dizer este “sim”? Essa pergunta levou-me às minhas raízes.

Entre Julho e Setembro de 1979 (tinha eu a bonita idade de 17 anos…) andei, nas páginas do semanário de extrema-esquerda “A Voz do Povo”, numa polémica com Mário Robalo (que ainda se lê nos jornais que sobrevivem). O meu único texto nessa polémica foi publicado a 31 de Agosto e levava o título Os cristãos e a revolução. Basicamente, nesse texto eu fazia a apologia do “valor revolucionário do cristianismo”. Defendia que era dentro da Igreja que deviam estar os cristãos. Criticava os que estavam sempre a lembrar os pecados passados da Igreja para a julgar no presente. Citando a Pacem in Terris escrevia que o comportamento cristão que tem “a verdade como fundamento, a justiça como regra, a liberdade como dinâmica e o amor como clima moral de acção” é o comportamento que idealmente permite a libertação. Mário Robalo, além de lembrar muitos dos argumentos clássicos para mostrar o carácter reaccionário da Igreja, defendia a sua condição de cristão fora das igrejas. Curiosamente (para mim, hoje) eu dizia-me marxista neste texto (não conheço nenhum outro texto meu, mesmo da juventude, onde diga isso: parece que fui marxista durante um Verão – apesar de, ainda hoje, considerar de enormíssima utilidade a crítica marxiana).

Que o convite do Terra da Alegria me tenha feito penetrar na arqueologia do meu passado pessoal (que trabalheira para descobrir o texto), fez-me pensar em algo muito mais importante: o mesmo acontece na nossa civilização. Há um santo, um mártir ou um pecador na árvore de Jessé de cada um de nós. Sendo devedores da cultura judaico-cristã, ignorá-la é ignorarmos o que somos. A generalizada ignorância acerca das raízes religiosas de aspectos centrais da nossa cultura é ignorância tout court. O desprezo por essa dimensão é desprezo por nós próprios. Impõe-se, por isso, mexer nessa arca e usufruir dela. Essa é uma primeira razão para ter embarcado no Terra da Alegria.

A outra razão prende-se com um aspecto central da polémica(zinha) que acima referi. Enquanto me considerei cristão (ser católico era uma contingência), nunca concebi que o pudesse ser fora de uma igreja. Isto é: fora de uma comunidade. Ainda hoje tenho alguma dificuldade em compreender as pessoas que, dizendo-se católicas, dizem que essa é uma opção interior que nada tem a ver com “cerimónias” e “idas à igreja”. O sentido de comunhão é inseparável daquilo que um agnóstico como eu ainda pode compreender numa religião. Parece-me um agudo sinal dos tempos que alguns queiram ser cristãos sozinhos.