Sempre foi difícil pensar a alteridade. E essa dificuldade, quando não acautelada, pode ter consequências devastadoras. Podemos tentar perceber isso olhando para exemplos que se nos apresentam a uma certa distância?
O texto seguinte, perguntamos ao leitor, será a descrição de quê, de que ritual?
«Quanto à iniciação de novos membros, os detalhes são tão repulsivos quanto bem conhecidos. Uma criança, coberta com massa de pão para enganar o incauto, é colocada perante o noviço. Este o apunhala até a morte ... enganado pela cobertura ele pensa que seus golpes são inofensivos. Então — é horrível — eles bebem avidamente o sangue da criança e disputam enquanto dividem suas pernas. Através dessa vítima eles se mantêm unidos e o fato de partilharem o conhecimento do crime garante seu silêncio ... No dia da festa eles se reúnem com seus filhos, irmãs, mães, pessoas de ambos os sexos e de todas as idades. Quando todos estão abrasados pela festividade e a luxúria impura acesa pela embriaguez, pedaços de carne são jogados para um cão amarrado a uma lâmpada. O cão pula, para além do comprimento de sua corrente. A luz, que poderia ter sido testemunha traidora, se apaga. Agora, na escuridão tão favorável ao comportamento desavergonhado, eles tecem os liames de uma paixão inominável, ao sabor da sorte. E todos são incestuosos, se não de fato, pelo menos por cumplicidade, pois tudo que é feito por um deles corresponde aos desejos de todos eles.»
Segundo Minucius Felix (século II), esta seria a descrição que um pagão teria dado de... uma Eucaristia celebrada por cristãos!
Quem conhece algum dos sucedâneos contemporâneos desse ritual pode fazer uma ideia do peso das interpretações preconceituosas nesta "descrição". Descontados todos os factores, sempre nos há-de fazer pensar na dificuldade de pensar o outro.
[Seguimos a pista de Klaas Woortmann, «O selvagem na "gesta Dei": história e alteridade no pensamento medieval», Revista Brasileira de História, 25(50) (2005), pp.307-308, que cita como fonte BARTRA, R.,Wild Men in the Looking Glass. The mythic origins of European Otherness, Ann Arbor, The University of Michigan Press, 1994, p. 41]