Já aqui publicámos anteriormente esta série de apontamentos. Mas os acontecimentos dos últimos tempos dão-lhes outra actualidade. Aquilo que ainda há umas semanas poderia parecer, a alguns mais distraídos, uma questão meramente académica, é agora claramente algo que está em frente dos nossos olhos e a ter um impacte directo nas nossas vidas. Em homenagem aos distraídos, e àqueles que só acordaram agora, e que pensam que tudo isto que está a acontecer é uma surpresa completa, deixamos aqui um contributo para uma reflexão acerca de alguns mitos maus relativos ao funcionamento das sociedades humanas.
Se admitirmos a existência das instituições e que elas, e não apenas os indivíduos, desempenham um papel na ordem social, na vida dos colectivos – ainda podemos admitir que as instituições sejam, simplesmente, o produto emergente da interacção espontânea entre agentes individuais. José Maria Castro Caldas, a certo passo de uma investigação desenvolvida no quadro da Economia com ferramentas da Inteligência Artificial, realiza um conjunto de experiências com a hipótese da ordem social espontânea. Essas experiências não são realizadas com robots físicos encorpados, mas com agentes de software, na linha da Simulação Multi-Agentes. Veremos aqui alguns aspectos desse contributo, até porque ele nos aproxima da estranha convivência entre ciências do artificial e pensamento económico.
Diz-nos Castro Caldas, em Escolha e Instituições: Análise Económica e Simulação Multiagentes (Castro Caldas 2001), que nem mesmo os economistas neoclássicos consideram que o “mercado livre” exista num vazio de regras: antes atribuem as regularidades comportamentais observáveis na sociedade exclusivamente à tendência para o equilíbrio e (como o equilíbrio resultaria das escolhas racionais, ou de processos de aprendizagem que convergiriam para estados estacionários compatíveis com estas escolhas), em última análise, à própria racionalidade. A explicação alternativa para as regularidades na acção social existe: regras partilhadas, normas e convenções sociais. Na tradição institucionalista próxima de Hayek, é reconhecida a importância das regras partilhadas sobre as quais assenta a ordem social. Mas é feita uma distinção entre regras concebidas deliberadamente (produção legislativa, por exemplo) e regras geradas de forma espontânea, que resultam do agregado das acções desenvolvidas por cada um dos indivíduos na prossecução do seu interesse próprio, acções essas e indivíduos esses que não teriam qualquer intenção de por essa via produzir regras. Hayek consideraria que as regras resultantes de um crescimento espontâneo são as regras próprias de uma ordem social benéfica (Castro Caldas 2001:175-176).
Castro Caldas, recorrendo ao Algoritmo Genético (uma técnica de evolução artificial) e dando-lhe uma interpretação própria (a que chama “interpretação comportamental”), vai realizar experiências de Simulação Multi-Agentes que pretendem fornecer elementos para discutir esta hipótese da ordem social espontânea: será que a mera interacção de agentes que prosseguem exclusivamente o seu interesse individual, tal como ele é percepcionado individualmente, resulta necessariamente em soluções eficientes para os problemas colectivos?
A isto nos dedicaremos nos próximos dias, nesta série de postais.
(Não é preciso esperar pelos próximos dias: está tudo publicado. Basta seguir o link no fim de cada apontamento. Esta é a vantagem de isto ser uma republicação.)
REFERÊNCIA
(Castro Caldas 2001) CASTRO CALDAS, José Maria, Escolha e Instituições – Análise Económica e Simulação Multiagentes, Celta Editora, Oeiras, 2001