24.10.08

a cegueira dos ideólogos


I - Um prefácio cautelar


É sempre arriscado comentar citações isoladas de um texto mais vasto que não conhecemos. Contudo, das duas uma: ou a citação respeita o texto original, no sentido em que o texto original não desmente ou não atenua em outros passos o que consta da citação - e, nesse caso, estamos autorizados a comentar essa citação sem reservas e tudo o que dizemos vai direitinho para o autor original; ou a citação é uma má citação, porque descontextualiza ao ponto de trair o texto original - e, nesse caso, o que temos é de culpar o citador: pela desonestidade, pela inépcia, ou mesmo porque a citação deficiente denuncia o que o citador queria dizer e, em vez de dizer pela própria voz, disse deformando a voz de outro.


II - Uma tese repentista sobre uma espécie de sobreviventes


Vem este arrazoado a propósito de uma citação que o Público estampa hoje, de uma frase de Luís Pais Antunes no Jornal de Negócios de ontem. É assim:
«Nos tempos conturbados que atravessamos, o que 'fica bem' é gritar contra a 'ganância', o capitalismo, os privados, as ideias liberais e defender o papel insubstituível do Estado como refúgio e garante de todos os valores e princípios.»
Pois, o que aqui se mostra é uma imensa deficiência lógica. Apresenta-se como alternativa exclusiva aquilo que não tem de o ser. O Estado pode colaborar na garantia de certos valores e princípios, sem que tenha de fazer isso para todos. O Estado pode fazer parte dessa garantia, temporariamente ou dependendo das circunstâncias concretas, sem ser para isso insubstituível. E pode querer-se que o Estado tenha algum papel sem deixar de ser "pró-capitalista"; e pode reconhecer-se que há casos de ganância excessiva sem deixar de reconhecer o papel positivo de uma vontade moderada e razoável de ter mais e melhor.
É que há mais opções em aberto do que aquelas que os "ideólogos" são capazes de compreender. E aqui chamo "ideólogos" aos que fazem tudo o que podem para impedir que vejamos a realidade que está à frente dos nossos olhos. [Embora reconheça que outra classe de ideólogos são os que pensam que o que está a acontecer só tem uma determinada solução: aquela específica receita que os seus manuais revolucionários (mesmo que escondidos debaixo da cama) aconselham.] Esses "ideólogos" são os verdadeiros "cegos": querem dizer-nos que o fracasso das suas teses simplistas não existe. E para defenderem isso não encontram melhor argumento do que negar que existe aquilo que todos vemos. Até os cegos.

[Permito-me o descaramento de recomendar de quem é esta crise?]

Soberba, um dos pecados capitais. Por Milo Manara.