Tal como aqui mencionei brevemente há dias, aconteceu em Lisboa, na semana que corre, a conferência anual da Society for the History of Technology, este ano comemorando os seus 50 anos. Não sou historiador e, normalmente, não seria chamado para aquelas bandas. Contudo, sendo que uma das sessões era sobre “Bio, Nano, Robo – New Challenges for Historians of Technology”, fui chamado a moderar essa sessão e a produzir um comentário às três comunicações que aí seriam apresentadas. Dou aqui, hoje, breve conta do que disseram os apresentadores. Posteriormente darei nota da linha do meu comentário.
Christian Kehrt, do Deutsches Museum em Munich, apresentou a primeira comunicação, intitulada “Writing the history of nanotechnology? Challenges and impasses of contemporary science and technology” .
Em resumo, o que Christian assinalou foi que não é muito esclarecedor tentar definir (ou compreender o que é) a nanotecnologia a partir de critérios como a escala das entidades com que se lida, ou os instrumentos que se usam, porque esses critérios não traduzem o que realmente está em causa. (Por exemplo, no caso do apelo à escala como elemento definidor, ela não funciona como tal porque há fenómenos à mesma escala que são estudados noutras disciplinas.) E acrescentou: o que pode ajudar a compreender a nanotecnologia é olhar para as visões partilhadas pelos seus praticantes. E isso implica estudar a construção social desse campo, bem como as estratégias e motivações dos actores envolvidos.
O ponto é, então, as visões. As visões levam os investigadores para lá do estabelecido, induzem a abertura de novas possibilidades de investigação, fornecem recursos simbólicos novos – e, por essa via, estimulam mais desenvolvimentos especificamente tecnológicos.
Christian quer, então, identificar visões da nanotecnologia. E entende que uma das visões centrais da nanotecnologia é a ideia da engenharia molecular, a ideia de ultrapassar os limites da natureza, de chagarmos a ser como um deus ex machina usando componentes moleculares e átomos.
Para compreender essa visão, disse-nos ainda, é preciso dar atenção ao conjunto de ciências e tecnologias que, especialmente após a Segunda Guerra Mundial, prometeram à sociedade a possibilidade de mudanças fundamentais – nomeadamente nos campos disciplinares da biologia e da micro-electrónica.
Sally Smith Hughes, da Universidade da California em Berkeley, apresentou a segunda comunicação, intitulada “Genes, Genentech, and the rise of commercial biotechnology” .
Sally apresentou uma certa história da primeira empresa inteiramente concentrada na engenharia genética, a americana Genentech. Enunciou, como objectivo da sua comunicação, usar o caso da Genentech para corrigir uma percepção comum da biotecnologia segundo a qual ela constituiria um desenvolvimento mais ou menos linear (inevitável e não problemático) a partir de descobertas ao nível científico fundamental em biologia molecular e bioquímica.
A Genentech foi criada na Califórnia em 1976 e talvez seja hoje a empresa de biotecnologias com mais sucesso em todo o mundo. Mas enfrentou diversos tipos de problemas.
Desde logo, o professor universitário de bioquímica, Herbert Boyer, que se associou a um jovem investidor com capital de risco para criar a empresa, foi criticado duramente pelos seus pares por violar os padrões éticos e culturais predominantes nas escolas de medicina nos anos 1979, devido à forma como misturava actividades empresariais e académicas. (Como os tempos mudaram…)
Depois, em termos estritamente tecnológicos, nessa altura havia muitas incertezas. A (então recente) invenção do ADN recombinante permitia recolher material genético de diferentes fontes, juntá-lo e cloná-lo ou reproduzi-lo em bactérias. Isso abria um vasto campo de aplicações: usar a engenharia de genes para produzir proteínas úteis em medicina, agricultura e várias áreas industriais. Contudo, não havia nada de mais incerto do que saber se isso poderia transformar-se em processos industriais viáveis. Designadamente, não se fazia ideia se bactérias muito simples, próximas do nível mais baixo da escala evolutiva, seriam capazes de “ler” a informação carreada pelos genes de organismos superiores. Apesar de sucessos iniciais, continuava a não se saber se a tecnologia do ADN recombinante seria capaz de produzir moléculas de proteínas úteis na prática médica, como a insulina ou a hormona do crescimento. Em 1978, a Genentech conseguiu clonar e expressar insulina humana, começando a dar passos decisivos para vencer a dificuldade tecnológica.
Depois, foi a dificuldade legal. A polémica que a comunicação social apresentava na forma da questão “podemos patentear a vida?”, relacionada com a protecção da propriedade intelectual, estava a seguir os seus trâmites no sistema judicial americano no caso Chakrabarty vs. Diamond. Quando o caso chegou ao Supremo Tribunal, em 1980, a Genentech foi uma das entidades que apresentou um parecer, no sentido da necessidade de criar as condições para o desenvolvimento das biotecnologias nos EUA, dada a sua importância económica na competitividade da economia americana. Nesse ano, o Supremo decidiu, por 5 contra 4 votos, que organismos vivos podiam ser patenteados.
Havia ainda aquilo a que Sally chama a dificuldade política e com a regulação governamental. A opinião pública estava preocupada com a possibilidade da técnica do ADN recombinante permitir a produção de bactérias “engenheiradas” que pudessem escapar ao controlo dos seus engenheiros e viessem a saúde humana ou o ambiente. Em 1977, os legisladores americanos estavam a considerar uma série de iniciativas legislativas para restringir o uso de tais possibilidades técnicas. A Genentech contribuiu para mudar a onda da opinião pública, e assim a onda dos legisladores, ao conseguir clonar com sucesso genes de interesse médico e comercial: começando a acenar com resultados em termos de saúde humana que eram publicidade positiva para a engenharia genética. E associando cada vez mais as farmacêuticas a esse movimento – bem como mais capital de risco.
Segundo Sally, a Genentech enfrentou muitas dificuldades mas venceu-as: no Outono de 1980 teve uma entrada triunfante na bolsa de New York, com o preço das acções acima de todas as expectativas.
Kathleen Richardson, da Universidade de Cambridge, apresentou a Terceira comunicação, intitulada “Robots and Futuristic Fantasises of Destruction” .
Kathleen elaborou sobre a introdução do termo “robot” na cultura do século XX pela mão do checo Karel Capek, em 1921, na peça R.U.R. – Rossum’s Universal Robot. Fez isso procedendo ao estudo do pensamento desse autor, expresso em termos directamente políticos e ideológicos em outras obras, e analisando a recepção da peça nos anos 20 e 30 do século XX.
Para além da apresentação de elementos interessantes da própria peça, que não vamos tentar aqui introduzir (isso terá de ser feita pela leitura de uma das traduções, que estão disponíveis à distância de uma busca na internet), há dois elementos centrais de interesse nesta comunicação.
Primeiro, Capek era um crítico quer da direita capitalista quer da esquerda comunista, considerando que os regimes inspirados tanto numa ideologia como noutra conduziam à mecanização do humano e à desvalorização da sua individualidade. É que, como expressamente mencionou Kathleen, Capek introduziu a questão dos robots, não para discutir as máquinas, mas para discutir a condição dos humanos e a organização das suas comunidades.
Segundo, há uma transformação significativa da noção de “robot” a partir da peça de Capek. Na própria peça, e nas primeiras encenações, os robots não eram máquinas. Os robots eram feitos dos mesmos materiais biológicos que os humanos, e tinham a mesma aparência que estes. Mas eram “feitos” de maneira diferente: numa linha de montagem. Posteriormente, em novas encenações da peça, é que começou a emergir uma nova apresentação dos robots, em que estes já têm aspecto de máquinas que se distinguem visualmente dos humanos de forma clara. Essas entidades de estatuto ambíguo tinham, por isso mesmo, trazido a ambiguidade como operação para o campo das fronteiras entre o humano e a máquina.
Posto isto, perguntei-me eu, que comentário posso eu produzir ao conjunto destas três comunicações? Amanhã (talvez…) darei conta disso.
[Continua aqui.]