15.10.08

Para uma economia política institucionalista

Nestas alturas os dias passam depressa. No já longínquo dia 30 de Setembro p.p., no Ladrões de Bicicletas, um dos "ladrões", José M. Castro Caldas, escrevia uma pequena nota onde sugeria a leitura de um texto e dava o link. Mas avisava logo: o texto é longo (primeira dificuldade) e está em francês (dificuldade intransponível para a maioria das [muitas] gerações mais novas do que eu). Li o texto e achei imediatamente que não era permitido deixá-lo escondido no biombo daquelas duas inconveniências. Então, numa manobra concertada, fiz um resumo e tradução para português, aceitando J.M. Castro Caldas fazer a revisão científica. O que muito lhe agradeço - em seu nome, caro leitor! E aqui deixamos o "quase manifesto institucionalista". No final damos a ligação para o original. Serviço público, passe a imodéstia. É que é preciso recomeçar a pensar. A menos que pensem que "a crise" foi um carnaval e já estamos em quarta-feira de cinzas...

Introdução
Comparando diferentes abordagens não ortodoxas à economia verificamos que é mais importante o que têm em comum do que aquilo em que divergem. Procuramos aqui registar e clarificar essas convergências, na convicção de que só uma economia política institucionalista pode dar um quadro de referência coerente e potenciador dessas diferentes abordagens. Não se trata de afrontar a ciência económica standard, mas de encontrar um compreensão de muitos progressos analíticos realizados dentro desse quadro.

A. Princípios gerais

1. Economia política versus ciência económica
A prioridade não deve ser dada à ciência económica (entendida como uma ciência mecânica), mas sim à economia política – entendida como um ramo da filosofia política, em si mesma entendida como a forma mais geral das ciências sociais. A ciência económica só faz sentido como momento analítico da economia política.

2. Um institucionalismo político
Para o institucionalismo entendido num sentido amplo, a proposta central é que nenhuma economia pode funcionar na ausência de um quadro institucional adequado. As condições para um bom funcionamento da economia residem tanto na existência de um sistema institucional claramente definido como na dinâmica global da sociedade civil. Uma economia política Institucionalista (EPI) não separa a análise dos mercados da reflexão sobre o pano de fundo político e ético de uma economia. Ela acredita que as instituições económicas estão entrelaçadas com as normas políticas, jurídicas, sociais e éticas, e todas elas devem ser estudadas e pensadas ao mesmo tempo.

3. Um institucionalismo situado

Uma economia política institucionalista não pode ser meramente especulativa, tem de ter em conta o contexto histórico e social de uma economia específica. Os seus conceitos, sendo necessariamente conceitos abstractos, como todos os conceitos, não serão nunca hipostasiados.



B. Princípios teóricos, teses e resultados

Posições críticas

4. Para além dos paradigmas standard e alargado
Todas as escolas institucionalistas são críticas tanto das hipóteses do Homo economicus (informação perfeita, racionalidade maximizante paramétrica e egoísta) como da teoria clássica do equilíbrio geral, que afirma que a livre coordenação entre esses agentes leva espontânea e automaticamente a um óptimo económico. O que pode ser chamado paradigma standard alargado procura responder aos defeitos dessas hipóteses apoiando-se na teoria dos jogos e na ideia de uma racionalidade estratégica: o agente económico afinal não calcula a utilidade que pode retirar do seu consumo de bens e serviços, mas sim a utilidade que pode resultar de cooperar ou não com outros agentes económicos. Mas esta abordagem permite concluir que, nesse quadro, não é possível alcançar mais do que coordenação local e equilíbrios sub-óptimos. Mesmo esses equilíbrios são, afinal, puramente tautológicos. A economia política institucionalista pretende que nenhuma cooperação viável e sustentável pode ser alcançada e estruturada apenas por via da racionalidade instrumental, seja paramétrica ou estratégica. Qualquer coordenação, para ser efectiva, envolve em maior ou menor grau a partilha de certos valores e a existência de uma regulação política.

5. Para além da dicotomia mercado / Estado

O institucionalismo enfatiza a incompletude e as falhas da regulação apenas pelo mercado, mas não preconiza a sua substituição por uma economia estatizada. Tanto as formas de regulação pelo mercado como pelo Estado devem ser combinadas para que sirvam a coordenação social em sentido lato – e, mais do que isso, é preciso contar com a própria sociedade civil e associativa e com as diversas formas de feixes de relações sociais.

Resultados

6. Três modos instituídos de circulação e não apenas um único
Como mostrou Karl Polanyi (e outros), os bens e serviços não circulam apenas pelo sistema de mercado, mas também por via da redistribuição, implementada por algum tipo de centro (hoje, o Estado), de acordo com um princípio de centralidade, e por via da reciprocidade, de acordo com um princípio de simetria. A reciprocidade é o que dá impulso ao que Marcel Mauss, no Essai sur le don, chama a tripla obrigação de dar, receber e partilhar. Como nenhum destes três modos de circulação pode realmente existir sozinho, a articulação entre mercado, redistribuição e reciprocidade – diferente de contexto para contexto – não ocorre espontaneamente. Deve ser instituída.

7. Não existe
the one best way em matéria de instituições (perspectiva sincrónica). A dependência da trajectória (the path dependency)
Uma das principais conclusões da economia política institucionalista é que não existe “a melhor de todas as receitas” para um arranjo : é preciso ter em conta o contexto e a dependência da trajectória para qualquer sistema económico. Por isso a economia política institucionalista se opõe ao chamado Consenso de Washington, segundo o qual o mercado é a solução única válida sempre e em toda a parte independentemente do contexto político e institucional pré-existente.

8. Não existe
the one best way em matéria de instituições (perspectiva diacrónica). Da impermanência de todas as coisas
Pelas mesmas razões, nenhum esquema institucional, por melhor que se mostre para um determinado período histórico, pode durar eternamente. O equilíbrio entre mercado, redistribuição e reciprocidade deve evoluir, porque o equilíbrio entre os diferentes grupos ou classes sociais, entre as esferas do privado, do público e do comum, tal como entre os níveis nacional, infra e supranacional, pode não permanecer estável.

9. Uma teoria da mudança institucional. A autonomia relativamente à trajectória. Continuidade e descontinuidade

O pressuposto funcionalista, segundo o qual todas as instituições existentes são necessariamente bem adaptadas à sociedade onde se inserem, pelo simples motivo de que existem, é totalmente errado. Uma das mais urgentes investigações a empreender diz respeito aos critérios para determinar quando uma dada arquitectura institucional deve ser mantida ou modificada.

Programa de Investigação

10. Uma análise multinível
A economia política tem de desenvolver uma análise institucionalista para todos os níveis de acção (micro, macro, meso, etc.).

11. Uma outra teoria da acção

A economia política institucionalista necessita desenvolver uma teoria própria da acção social e económica. Residem aí provavelmente as maiores divergências entre diferentes escolas institucionalistas. Mas, defendendo todas a análise multinível, não podemos confiar em qualquer individualismo metodológico ou holismo simples. O indivíduo capaz de agir não pode ser considerado apenas isolado e centrado em si próprio, mas também como membro de uma família, de um grupo de pares, de diversas organizações e instituições, de uma ou mais comunidades de cariz social, político, cultural ou religioso. Nenhum agente económico pode ser considerado apenas como calculador maximizador: todos tentam também encontrar significado no que fazem. E temos de ter isso em conta.

C. Propostas normativas

12. Antes de mais, construir uma comunidade política
Não pode haver eficiência económica durável sem uma comunidade política e ética sustentável, que partilhe um certo número de valores fundamentais e um sentido de justiça. E, portanto, sem ser também uma comunidade moral.

13. Construir uma comunidade democrática

Nenhuma comunidade política moderna pode ser construída sem referência a um ideal democrático. Havendo concepções múltiplas e divergentes acerca da democracia, não se entra aqui nesse debate. Diga-se, contudo, que uma sociedade democrática procura os meios efectivos para desenvolver as capacidades (empower) do maior número possível de pessoas.

14. Construir uma comunidade moral e justa

Nenhuma comunidade política pode perdurar sem a partilha de certos valores fundamentais e sem que a maioria dos seus membros estejam convencidos de que a maior parte entre eles (especialmente os líderes) os respeitam realmente – porque esse sentimento é o primeiro cimento da legitimidade política.

15. Generalizar John Rawls

Se a existência e a sustentabilidade da comunidade política não são dadas como garantidas por si mesmas, mas como algo que deve ser produzido e reproduzido, então é necessário alargar a teoria da justiça de John Rawls. O estabelecimento de uma comunidade política implica tanto lutar contra a riqueza privada excessiva e ilegítima como contra a pobreza extrema.

16. Generalizar Montesquieu

Se não virmos a democracia apenas como um sistema político-constitucional, mas também em termos da de capacitação (empowerment) das pessoas, então não basta pensar os mecanismos de equilíbrio de poderes dentro do sistema político (que são necessários), mas pensar também no equilíbrio de poderes entre o Estado, o mercado e a sociedade, e, do ponto de vista estritamente económico, entre o mercado, a redistribuição estatal e reciprocidade social.

Conclusão

17. Uma abordagem normativa e comparativa das instituições
A economia institucionalista, recusando quer as pretensões de enunciar soluções teóricas de aplicação supostamente universal, quer a pretensão relativista de que todos os arranjos institucionais existentes se justificam pelo mero facto de existirem, fica com uma tarefa em mãos: compreender quais os critérios que permitam determinar, em cada caso, qualquer a melhor arquitectura institucional para uma dada sociedade num dado momento. Isso só pode ser alcançado por via de uma abordagem normativa comparativa.

18. Rumo a uma teoria gradualista reformista-revolucionária da evolução

Uma das principais conclusões da economia política institucionalista é que aqueles que pretendem transformar as instituições existentes devem, em geral, ser tão modestos quanto prudentes. Os efeitos complexos de qualquer mudança institucional não facilitam as previsões sobre o seu resultado final. É por isso que as reformas progressivas, e não impostas de fora, são mais seguras do que as reformas radicais. Mas isto não é defender um reformismo tímido? É defender reformas que, uma vez postas em marcha, ninguém quer travar (assim resistindo, por exemplo, a mudanças eleitorais). Assim é que se podem conseguir reformas basculantes (shifting reforms). Reformas tímidas que podem ser revolucionárias. Mas a situação política pode ser de tal ordem que só uma revolução, uma brusca mudança de regime político, seja capaz de iniciar tais reformas.

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NOTA : O presente texto é uma versão resumida e traduzida do francês para português por Porfírio Silva, com revisão científica de José M. Castro Caldas. O texto mantém a mesma estrutura do original (em parágrafos numerados) para facilitar a consulta directa da versão integral.
O texto original foi redigido por Alain Caillé e conta com vários signatários publicamente assinalados, entre os quais Robert Boyer, Olivier Favereau, Jose Luis Corragio, Peter Hall, Geoffrey Hodgson, Marc Humbert, Ahmet Insel, Michael Piore, Ronen Palan, Paul Singer. E, das fileiras da sociologia económica : Bob Jessop, Jean-Louis Laville, Michel Lallement, Philippe Steiner, François Vatin.

O texto integral original em francês encontra-se em linha em


Vers une économie politique institutionnaliste