2.7.07

Política, Ciência, Linguagem (e Memórias)


Começou ontem mais uma Presidência Portuguesa da União Europeia (ou, mais precisamente, do Conselho da União Europeia). Guardando gratas recordações da anterior Presidência Portuguesa (em 2000), na qual tive um modesto papel (fui presidente do Grupo das Questões Sociais no Conselho), faço aqui uma pequena comemoração de um tempo que foi uma muito gratificante experiência profissional e pessoal: reedito (com minúsculas alterações) um post que apareceu no defunto Turing Machine a 23 de Janeiro de 2004.


Política Europeia. A 1 de Maio de 1999 entrou em vigor o Tratado de Amesterdão, que modificava o Tratado que institui a Comunidade Europeia. Uma das modificações consistia no novo Artigo 13, segundo o qual o Conselho (que reúne os ministros dos Estados Membros) "pode tomar as medidas necessárias para combater a discriminação em razão do sexo, raça ou origem étnica, religião ou crença, deficiência, idade ou orientação sexual". A 25 de Novembro de 1999 a Comissão Europeia propôs o "pacote anti-discriminação": duas directivas, uma para ilegalizar a discriminação racial em largos domínios da vida social e outra para ilegalizar a discriminação no mercado de trabalho relativamente aos outros motivos de discriminação; um programa de acção para apoiar a aplicação da futura legislação. (A discriminação sexista já estava coberta por abundante legislação europeia, pelo que ficou de fora destas propostas.) Dada a especial sensibilidade de uma matéria que era nova nas competências comunitárias, o Tratado exigia unanimidade dos Estados Membros na aprovação. O primeiro elemento desse pacote a ser aprovado foi a "directiva raça", que ilegalizava a discriminação racial ou étnica em domínios muito vastos da vivência social, como o mercado de trabalho, a protecção social, a educação, o acesso aos bens e serviços, a habitação. Um dos aspectos curiosos da negociação surgiu logo no início do processo: um grupo de países (com destaque para a Suécia) argumentava que não existem, na humanidade, diferentes raças, apenas uma raça humana - pelo que não aceitava que a legislação usasse expressões como "raça" ou "origem racial". Não punham objecções à expressão "origem étnica".


Ciência. Lembrei-me disto a propósito do tema de capa da Scientific American de Dezembro de 2003. À pergunta "As raças existem?" a resposta (simplificada) é: não. Detalhemos. As características genéticas que determinam as características físicas usadas para distinguir as raças (como cor da pele, textura do cabelo, traços faciais) não permitem em geral definir populações do ponto de vista genético. As "raças" não são geneticamente homogéneas. A maior parte da variação entre indivíduos é dentro do mesmo grupo e não entre grupos. É verdade que um certo tipo de informação genética permite distinguir grupos humanos com antepassados comuns de forma suficientemente precisa para que essa variável possa ter interesse (p.ex. do ponto de vista médico) - MAS: (i) esses grupos não são raças; (ii) a informação genética necessária para essa atribuição não reside nos genes (que influenciam os nossos traços "raciais"), mas em certos polimorfismos na sequência de pares-base do ADN; (iii) só análises genéticas muito finas permitem essa atribuição de indivíduos a grupos.


Linguagem. Na negociação comunitária acima referida, a Suécia e seus aliados tinham, pois, do ponto de vista "filosófico", razão. No entanto, outras delegações argumentavam: se não se falar de raça, parece que estamos a fugir ao problema do racismo. É que o racismo age no pressuposto de que existem raças e é isso que se visa combater. Além disso, o Tratado fala em raça, uma directiva em aplicação do Tratado deve falar em raça. Foi tentada, então, uma solução "linguística": as cerca de dez ocorrências da expressão "origem racial ou étnica" contidas na proposta de directiva seriam sistematicamente substituídas por "alegada origem racial ou étnica". Assim, por exemplo, falar-se-ia de "combate à discriminação baseada em motivos de alegada origem racial ou étnica". Isto punha vários problemas. Por exemplo: todos reconhecem a existência real de etnias. Podia tentar-se um texto ainda mais obscuro, como "alegada origem racial ou origem étnica". Confuso! Outro: do ponto de vista jurídico, pelo menos em alguns países, esse texto podia pressupor que só haveria discriminação quando o autor tivesse em mente, ao praticar um acto, que ele estava ligado a uma pertença racial da vítima - o que tornaria extraordinariamente difícil a prova. A solução linguística falhou, como não podia deixar de ser: mesmo o conjunto limitado de línguas oficiais da UE não permitia encontrar uma forma de contornar a realidade por via da expressão linguística rebuscada e tortuosa. Aliás, num certo sentido, a solução linguística só foi tentada para mostrar que ela era inviável. A solução final foi: deixar a referência às raças no dispositivo jurídico e inserir no preâmbulo um considerando afirmando que isso não prejudicava o facto de que "a UE rejeita as teorias que tentam provar a existência de raças humanas separadas".


Memórias. O meu particular interesse por este assunto vem de ele me estar na memória. Coube-me na roleta a grata tarefa de presidir ao grupo de trabalho do Conselho que, entre Janeiro e Junho de 2000, tratou quase diariamente (à mesa e nos bastidores) de pôr a "directiva raça" em condições de ser aprovada por unanimidade. Um processo negocial envolvendo (na altura) quinze países, a Comissão e o Parlamento Europeu, sob fortes pressões desencontradas de ONGs e parceiros sociais, sobre um tema tão delicado politicamente e tocando aspectos muito diversos do ordenamento jurídico dos Estados envolvidos - foi uma selva. Uma selva luxuriante, diga-se. Acerca desse processo negocial, escreveu Adam Tyson (num texto de 2001), numa análise detalhada por parte de quem aí representou a Comissão Europeia: "A directiva foi negociada e adoptada pelo Conselho em 7 meses a contar da data da proposta pela Comissão. Trata-se de um record em termos de adopção de um instrumento legislativo da Comunidade requerendo mudanças legislativas substanciais a nível nacional (...)." Andrew Geddes e Virginie Guiraudon, académicos que tiveram acesso a informação de actores envolvidos que só foi "libertada" mais tarde, comparando o resultado (conteúdo legislativo) com o tempo dispendido, falam (num texto de 2004) de "record mundial" e escrevem que "ninguém esperava que tanto pudesse ser alcançado em tão pouco tempo". Tudo me voltou agora da memória na forma de uma tríade explosiva: política, ciência e linguagem.




Imagem de Nancy Burson, Scientific American, Dezembro 2003 ( ver mais do seu projecto artístico e interventivo em "There is only one race, the human one. The concept of race is not genetic, but social. There is no gene for race. The Human Race Machine allows us to move beyond differences and arrive at sameness. We are all one." )