O blogue Estados Gerais publicou muito recentemente um detalhado texto sobre o chamado caso Alves Reis, tendo dado a essa posta o título O crime... nem sempre compensa. Um leitor deixou um comentário muito curioso a essa história: "Só há um probleminha na tua história. As notas não eram falsas. Eram mesmo verdadeiras!". Até ao momento, o José Alberto Mostardinha, o autor do blogue em questão, e que tantas vezes se dá ao trabalho de contar as coisas com bastante detalhe, ainda não disse nada sobre este comentário. Aproveitando a deixa, digo eu aqui qualquer coisa sobre isso. Esta posta será muito mais longa do que é aqui costume, mas acho que vale a pena. Procuro mostrar a diferença entre "falsificar coisas" (notas de banco, por exemplo) e "falsificar instituições".
O caso Alves Reis: falsificar instituições
Em poucos meses no ano de 1925 foram postas a circular em Portugal continental mais de cem mil notas falsas de 500 escudos. Essas notas falsas tinham uma particularidade notável: eram estritamente iguais às notas verdadeiras correspondentes. Eram do mesmo tipo de papel, tinham sido impressas com as mesmas tintas e pelos mesmos processos que as notas oficiais. Aliás, tinham sido impressas pela mesma rotativa, com as mesmas chapas e na mesma casa impressora que produzira as notas legais.
Na verdade, um grupo de falsários convencera a firma Waterlow & Sons, de Londres, que tinha experiência de impressão de notas portuguesas, de que tinha mandato do governador do Banco de Portugal e do governo do país para imprimir mais notas de 500$00 com a efígie de Vasco da Gama, na variante designada por “chapa 2”, usando precisamente as mesmas chapas, a mesma numeração das notas e as mesmas chancelas do governador e dos directores do banco que detinha o exclusivo da emissão de papel moeda no país. O falso engenheiro e falso capitalista Alves Reis, líder da operação, falsificara os documentos necessários a induzir a Waterlow & Sons nesse erro, que viria a pagar caro – mas, se os contratos que foram exibidos e as pretensas cartas do governador a autorizar novo uso das matrizes das notas eram falsas, as notas produzidas e distribuídas como resultado dessa operação eram em tudo materialmente iguais às suas gémeas legais.
Os próprios peritos do Banco de Portugal tiveram ocasião de atestar repetidas vezes que as notas eram perfeitamente conformes. A transformação das notas “clandestinas” em dinheiro normal realizou-se por vários métodos, nomeadamente: compra de divisas no mercado negro, depósitos bancários prontamente levantados ou transferidos para outras contas poucos dias depois, compras de jóias, aquisição de autorizações alfandegárias para importação de bens pagos em divisas estrangeiras. A pressa com que tudo isso foi feito, em vários pontos do país, provocou uma avalanche de notas novas daquele tipo, o que em vários casos levantou suspeitas – que foram prontamente afastadas pelos serviços do Banco de Portugal em várias localidades, que atestavam sempre a perfeita legalidade das notas.
A certa altura, face à agitação da opinião pública em torno da questão, começando a tornar-se significativos os casos de recusa do público no recebimento dessas notas, o Banco de Portugal tomou pública posição oficial: a 6 de Maio desse ano, desmente em comunicado a circulação de notas falsas de quinhentos escudos, no qual sublinha que todas as que tinha recebido para exame e que tinham sido analisadas pelos seus peritos eram notas verdadeiras do Banco de Portugal, fabricadas na Waterlow & Sons.
Só no final do ano, quando as autoridades monetárias já estavam certas de que algo estava errado e procederam à verificação sistemática de milhares dessas notas, é que encontraram, entre seis mil notas conferidas, quatro duplicadas, isto é, que tinham a mesma matrícula. Algo tinha de estar errado – mas nem isso tornou menos impossível distinguir as falsas das verdadeiras. Por isso, foi decidido retirar de circulação as notas desse modelo, mas – a atestar mais uma vez a completa identidade material entre os dois conjuntos de notas – o Banco de Portugal mandou recolher (trocando-as por outras notas nos seus balcões) todas as notas de 500$00 Vasco da Gama chapa 2, por se confessar incapaz de distinguir as notas das diferentes emissões.
Havia, pois, notas falsas e notas legais – mas eram, do ponto de visto físico, rigorosamente iguais. Aliás, eram demasiado iguais. A casa impressora não achara estranha a encomenda de notas com a mesma numeração, porque fora “informada” de que este novo lote seria para circular na província africana de Angola, após posterior acrescento dessa menção às notas em tudo o mais idênticas às da metrópole. Mesmo assim, certas notas eram legais e outras eram falsas.
O cérebro da operação, que deu o seu nome ao escândalo, Alves dos Reis, elaborara o conceito desta fraude gigantesca ao ler um discurso do deputado Cunha Leal na Câmara dos Deputados. Nesse discurso, Cunhal Leal denunciava as “emissões surdas” de notas. As emissões surdas eram emissões de moeda decididas pelo governo à revelia das leis e do poder legislativo, isto é, sem estarem devidamente suportadas pelos diplomas legais devidamente aprovados para o parlamento com esse fim – ou mesmo decididas pelo Banco de Portugal sem o conhecimento atempado do próprio governo. Essa situação anómala tinha começado a ser gerada devido ao facto de não se respeitarem as leis relativas à cobertura da circulação fiduciária pelas reservas oficiais de ouro e prata. Ora, pensara Alves dos Reis, se o Banco de Portugal podia fazer “emissões clandestinas” de moeda, porque não haveria eles também de fazer outro tipo de emissões clandestinas? Num certo sentido, as emissões do Banco de Portugal que não tinham cobertura legal apropriada também eram fraudulentas, embora esse abuso estivesse mais entranhado na própria estrutura institucional que o deveria prevenir.
Note-se que o grupo de Alves dos Reis, com o dinheiro conseguido com esta “emissão surda” especial, criou um banco comercial (Banco Angola e Metrópole) e começou imediatamente a tentar controlar o Banco de Portugal, que era uma sociedade de capitais privados ( embora obrigado a normas legais específicas e com um governador nomeado pelo governo), cujas acções (pouco rentáveis comercialmente) estavam em geral nas mãos de famílias e empresas ligadas ao poder. Alves dos Reis pretendia obter no Banco de Portugal força suficiente para tornar “legais” as suas emissões “clandestinas” de notas.
É que, de facto, o que distinguia aquelas notas falsas das notas oficiais não estava nas próprias notas, na sua composição físico-química, em qualquer das suas qualidades materiais. A “única” diferença entre aquelas notas falsas e as notas legais era a sua inserção em certos aspectos da organização social do país, nas leis do país e na distribuição de competências que dessas leis decorria quanto a certas funções. A única diferença entre aquelas notas falsas e as notas da emissão regular era uma diferença institucional. O que Alves dos Reis se preparava para fazer não era falsificar notas, mas falsificar instituições.
(A informação básica sobre a série de acontecimentos que se narram acima foi recolhida em Francisco TEIXEIRA DA MOTA, Alves Reis – Uma História Portuguesa (4 volumes), Lisboa, Contexto Editora e Público, 1996)
Na verdade, um grupo de falsários convencera a firma Waterlow & Sons, de Londres, que tinha experiência de impressão de notas portuguesas, de que tinha mandato do governador do Banco de Portugal e do governo do país para imprimir mais notas de 500$00 com a efígie de Vasco da Gama, na variante designada por “chapa 2”, usando precisamente as mesmas chapas, a mesma numeração das notas e as mesmas chancelas do governador e dos directores do banco que detinha o exclusivo da emissão de papel moeda no país. O falso engenheiro e falso capitalista Alves Reis, líder da operação, falsificara os documentos necessários a induzir a Waterlow & Sons nesse erro, que viria a pagar caro – mas, se os contratos que foram exibidos e as pretensas cartas do governador a autorizar novo uso das matrizes das notas eram falsas, as notas produzidas e distribuídas como resultado dessa operação eram em tudo materialmente iguais às suas gémeas legais.
Os próprios peritos do Banco de Portugal tiveram ocasião de atestar repetidas vezes que as notas eram perfeitamente conformes. A transformação das notas “clandestinas” em dinheiro normal realizou-se por vários métodos, nomeadamente: compra de divisas no mercado negro, depósitos bancários prontamente levantados ou transferidos para outras contas poucos dias depois, compras de jóias, aquisição de autorizações alfandegárias para importação de bens pagos em divisas estrangeiras. A pressa com que tudo isso foi feito, em vários pontos do país, provocou uma avalanche de notas novas daquele tipo, o que em vários casos levantou suspeitas – que foram prontamente afastadas pelos serviços do Banco de Portugal em várias localidades, que atestavam sempre a perfeita legalidade das notas.
A certa altura, face à agitação da opinião pública em torno da questão, começando a tornar-se significativos os casos de recusa do público no recebimento dessas notas, o Banco de Portugal tomou pública posição oficial: a 6 de Maio desse ano, desmente em comunicado a circulação de notas falsas de quinhentos escudos, no qual sublinha que todas as que tinha recebido para exame e que tinham sido analisadas pelos seus peritos eram notas verdadeiras do Banco de Portugal, fabricadas na Waterlow & Sons.
Só no final do ano, quando as autoridades monetárias já estavam certas de que algo estava errado e procederam à verificação sistemática de milhares dessas notas, é que encontraram, entre seis mil notas conferidas, quatro duplicadas, isto é, que tinham a mesma matrícula. Algo tinha de estar errado – mas nem isso tornou menos impossível distinguir as falsas das verdadeiras. Por isso, foi decidido retirar de circulação as notas desse modelo, mas – a atestar mais uma vez a completa identidade material entre os dois conjuntos de notas – o Banco de Portugal mandou recolher (trocando-as por outras notas nos seus balcões) todas as notas de 500$00 Vasco da Gama chapa 2, por se confessar incapaz de distinguir as notas das diferentes emissões.
Havia, pois, notas falsas e notas legais – mas eram, do ponto de visto físico, rigorosamente iguais. Aliás, eram demasiado iguais. A casa impressora não achara estranha a encomenda de notas com a mesma numeração, porque fora “informada” de que este novo lote seria para circular na província africana de Angola, após posterior acrescento dessa menção às notas em tudo o mais idênticas às da metrópole. Mesmo assim, certas notas eram legais e outras eram falsas.
O cérebro da operação, que deu o seu nome ao escândalo, Alves dos Reis, elaborara o conceito desta fraude gigantesca ao ler um discurso do deputado Cunha Leal na Câmara dos Deputados. Nesse discurso, Cunhal Leal denunciava as “emissões surdas” de notas. As emissões surdas eram emissões de moeda decididas pelo governo à revelia das leis e do poder legislativo, isto é, sem estarem devidamente suportadas pelos diplomas legais devidamente aprovados para o parlamento com esse fim – ou mesmo decididas pelo Banco de Portugal sem o conhecimento atempado do próprio governo. Essa situação anómala tinha começado a ser gerada devido ao facto de não se respeitarem as leis relativas à cobertura da circulação fiduciária pelas reservas oficiais de ouro e prata. Ora, pensara Alves dos Reis, se o Banco de Portugal podia fazer “emissões clandestinas” de moeda, porque não haveria eles também de fazer outro tipo de emissões clandestinas? Num certo sentido, as emissões do Banco de Portugal que não tinham cobertura legal apropriada também eram fraudulentas, embora esse abuso estivesse mais entranhado na própria estrutura institucional que o deveria prevenir.
Note-se que o grupo de Alves dos Reis, com o dinheiro conseguido com esta “emissão surda” especial, criou um banco comercial (Banco Angola e Metrópole) e começou imediatamente a tentar controlar o Banco de Portugal, que era uma sociedade de capitais privados ( embora obrigado a normas legais específicas e com um governador nomeado pelo governo), cujas acções (pouco rentáveis comercialmente) estavam em geral nas mãos de famílias e empresas ligadas ao poder. Alves dos Reis pretendia obter no Banco de Portugal força suficiente para tornar “legais” as suas emissões “clandestinas” de notas.
É que, de facto, o que distinguia aquelas notas falsas das notas oficiais não estava nas próprias notas, na sua composição físico-química, em qualquer das suas qualidades materiais. A “única” diferença entre aquelas notas falsas e as notas legais era a sua inserção em certos aspectos da organização social do país, nas leis do país e na distribuição de competências que dessas leis decorria quanto a certas funções. A única diferença entre aquelas notas falsas e as notas da emissão regular era uma diferença institucional. O que Alves dos Reis se preparava para fazer não era falsificar notas, mas falsificar instituições.
(A informação básica sobre a série de acontecimentos que se narram acima foi recolhida em Francisco TEIXEIRA DA MOTA, Alves Reis – Uma História Portuguesa (4 volumes), Lisboa, Contexto Editora e Público, 1996)