29.3.10

filhote de robot ou filhote de engenheiros?


A Pública, revista dominical do Público, publicou ontem um trabalho sobre um dos projectos do Instituto de Sistemas e Robótica (pólo do Instituto Superior Técnico), casa onde tenho a honra de ser acolhido de momento. Sugerimos a leitura desse trabalho: Chico, o robô.


O coordenador do laboratório onde corre este trabalho deu uma conferência, no Ciclo "Das Sociedades Humanas às Sociedades Artificiais" (de que tinho sido organizador) que foi aqui apresentada anteriormente e que pode ser vista aqui.



O filhote-robot

O “filhote-robot” é um projecto internacional (iniciado em 2004 e agora em fase de conclusão) que construiu uma série de robots designados como iCub. (Para uma apresentação inicial, Sandini et al., 2004.) Trata-se de um robot humanóide representando as características físicas e cognitivas de uma criança humana de três anos e meio, capaz de gatinhar e de manipular objectos – e de, assim, aprender pela interacção com humanos. O seu “corpo”, com um elevado número de graus de liberdade (53), nove dos quais nas mãos com três dedos independentes e outros dois para estabilidade e suporte, seis dos quais nas pernas que deverão permitir locomoção bípede; as câmaras digitais para a visão, os microfones e outros sensores; no futuro uma pele artificial; e um poder computacional fornecido por máquinas exteriores ligadas por cabos – estão já a permitir experiências de interacção com humanos dirigidas para perceber melhor como é que as capacidades sensório-motoras e cognitivas de um espécime jovem resultam dessa interacção com outros membros de uma espécie natural. É claro que o iCub não é um robot que possa já ter uma interacção natural com humanos, no ambiente dos próprios humanos, estando confinado a laboratórios e ao contacto com experimentadores. Contudo, é um avanço prometedor na experimentação de uma ideia estimulante: grande parte das aquisições pós-natais dos indivíduos de determinadas espécies é devida à interacção apropriada com outros indivíduos em estádios mais avançados de desenvolvimento.



Mais informação no sítio do projecto. As fotos deste apontamento são todas provenientes daí.




Aproveito, entretanto, para deixar aqui umas reflexões sobre a linha de Nova Robótica em que vemos este trabalho integrar-se.

Desenvolvimento para Robots

A maior parte dos sistemas da Nova Robótica trata com, digamos assim, robots que já “nascem adultos”. Todo o complexo de processos que, nas espécies que se reproduzem sexualmente, levam da célula única resultante da fecundação ao indivíduo adulto completamente formado, é ignorado. Essa falta de atenção ao desenvolvimento (pré-natal ou pós-natal) é o espaço que pretende ser ocupado pela Robótica do Desenvolvimento (RD), ou Robótica Epigenética, como resposta ao diagnóstico de que esse pode ser um entrave crucial às ambições das Ciências do Artificial. Como escrevem (Lungarella et al. 2003:179): “A mera observação de que quase todos os sistemas biológicos – em diferentes medidas – passam por processos de amadurecimento e desenvolvimento, comporta a convincente mensagem de que o desenvolvimento é a principal razão pela qual a adaptabilidade e a flexibilidade dos sistemas compostos orgânicos transcende a dos sistemas artificiais”.
A RD não constitui ainda um campo de investigação bem delimitado e permanece muito heterogéneo. Autores diferentes concentram-se em momentos e aspectos diferentes da interacção entre organismos e ambiente no desenvolvimento de um organismo. Por exemplo, na esteira de (Teuscher et al., 2003) vem uma preferência por abordagens centradas na concorrência de três processos (filogenia, ontogenia, epigenia) que, em escalas temporais diferentes, conformam os organismos adultos de uma dada espécie. Já (Zlatev e Balkenius 2004) induzem uma abordagem mais interessada pelos aspectos psicológicos do desenvolvimento pós-natal. De qualquer modo, a RD difere de outras visões das Ciências do Artificial em aspectos essenciais, dos quais passamos a destacar alguns que consideramos mais significativos.

Primeiro, a RD sublinha sem concessões o papel do corpo na cognição: seja qual for a base inata, os mecanismos cognitivos virão a ser o resultado dos processos de interacção entre um corpo com certas características sensório-motoras e um mundo em movimento em que esse corpo tem de se desembaraçar.

Segundo, o desenvolvimento é um processo incremental, em que o que é possível num estádio depende do que se adquiriu em estádios anteriores – mas, igualmente, um processo não linear, com instabilidades, regressões, mudanças de ritmo, ritmos desencontrados em dimensões diferentes.

Terceiro, o desenvolvimento cognitivo é condicionado, mas também apoiado, por constrangimentos do corpo: as limitações sensoriais, se limitam as capacidades cognitivas, também protegem o seu carácter incremental (por exemplo, as limitações visuais do recém-nascido permitem que só tenha que lidar com um fluxo restrito de dados visuais, de acordo com o desenvolvimento incipiente do sistema neuronal).

Quarto, o desenvolvimento não depende de um controlador central que organize todo o processo, sendo em muitos aspectos mais um conjunto de processos de auto-organização, ligados a diferentes aspectos da interacção com o ambiente. O que é interessante é que processos centralizados, favorecidos por certas correntes mais clássicas das Ciências do Artificial, provavelmente seriam incapazes de lidar com os mesmos problemas. Atente-se, por exemplo, no que significa o “mero” controlo da estrutura constituída pelo esqueleto e pelos músculos. Mesmo que cada um dos cerca de 600 músculos do corpo humano só tivesse duas posições (contraído ou relaxado), isso faria com que o número de possíveis configurações do sistema (2600) fosse superior ao número de átomos no universo conhecido. Esse tipo de complexidade dos organismos vivos sugere que o projecto explícito de criaturas artificiais com sistemas de controlo centralizados pode ser impraticável.

Quinto, o desenvolvimento (pós-natal) depende essencialmente de processos sociais, já que ele acontece graças a um número massivo de interacções continuadas com outros indivíduos, principalmente da mesma espécie, adultos ou em estádios ulteriores de desenvolvimento, que proporcionam naturalmente (na maior parte dos casos sem um treino específico) os desafios adequados ao carácter incremental do processo. Por essa via, provavelmente impossível de formalizar de maneira a poder ser automatizada, a espécie acolhe os seus espécimes – de forma social (apesar de a dimensão social ter demorado tanto a começar a ser sequer pensada pelas Ciências do Artificial).

Fico com alguma esperança de que sigam as ligações e descubram, a partir daqui, um pouco do que se faz em Nova Robótica por esse mundo fora - ficando, de passagem, mais despertos para o facto de em Portugal haver quem esteja na linha da frente da investigação mundial nestas matérias.

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REFERÊNCIAS

(Lungarella et al. 2003) Lungarella, M.; Metta, G.; Pfeifer, R.; Sandini, G. 2003. Developmental robotics: a survey. Connection Science, 15(4), 151-190

(Sandini et al., 2004) Sandini, G.; Metta, G.; Vernon, D. 2004. RobotCub: An Open Framework for Research in Embodied Cognition. In: Proceedings of Humanoids 2004 (IEEE-RAS/RSJ International Conference on Humanoid Robots). Los Angeles, Novembro de 2004

(Teuscher et al., 2003) Teuscher, C.; Mange, D.; Stauffer, A.; Tempesti, G. 2003. Bio-inspired computing tissues: towards machines that evolve, grow, and learn. BioSystems, 68 (2-3), 235-244

(Zlatev e Balkenius 2004) Zlatev, J.; Balkenius, C. 2004. Why ‘Epigenetic Robotics’?. In: Balkenius, C.; Zlatev, J.; Kozima, H.; Dautenhahn, K.; Breazeal, C. (eds.). Proceedings of the First International Workshop on Epigenetic Robotics: Modeling Cognitive Development in Robotic Systems. Lund, Lund University Cognitive Studies

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Pedimos desculpa aos leitores, mas só umas horas depois de publicado este texto nos apercebemos de que tinha "fugido" uma formatação de texto que transformava uma potência noutro número que não correspondia ao que se estava a tentar dizer. É quando falamos nos músculos do corpo humano. Lá fica o pessoal a pensar que os filósofos só dizem disparates quando se põem a falar de números...