Hoje é dia de eleições e não venho falar de eleições. Venho falar de uma das minhas outras vidas, de eventos dos últimos dias que não tive tempo para partilhar convosco. Coisas das minhas actividades poéticas.
A revista "folhas, letras & outros ofícios", do Grupo Poético de Aveiro, acaba de aparecer no seu nº 14, contendo dois poemas meus: "As mães" e "O insecto da sombra". Antes de passar a outra notícia, aqui vos deixo esses dois poemas de minha autoria.
A outra novidade é que o poeta Luís Quintais me deu a honra e o prazer de publicar uma recensão dos meus "Monstros Antigos" no nº 190 da "Colóquio Letras" (revista da Fundação Calouste Gulbenkian), dirigida por Nuno Júdice.
Aqui vos deixo a recensão.
***
Porfírio Silva, Monstros Antigos, Lisboa, Esfera do Caos, 2013.
A poesia hoje poderá ser um eco disso, uma simulação disso. A poesia poderá e será hoje não o género literário claro, delimitado que foi um dia - e que deve muito a uma determinada aceção do que é a prosódia, a síntese e a intensidade -, mas outra coisa que se define por uma determinada aceção do fazer linguagem. A poesia será aquilo que da linguagem nos é alheio, será, se quisermos, a alteridade ou a diferença que subsiste, que teima em subsistir, na linguagem que julgámos nossa, e, nesse sentido, habitável.
Tudo isto a propósito de «Monstros Antigos», um livro de poemas de Porfírio Silva. Sendo um filósofo da ciência com um trabalho considerável no domínio, com textos importantes sobre Paul Feyerabend, a cibernética, e o artificial, o autor parece convocar no seu livro uma forma de escrita que é, até pelas suas declinações de carácter mais meta-representacional e ecfrástico, uma extensão das suas preocupações de filósofo e estudioso da ciência.
Não é comum encontrar poetas no cânone português que se tenham consagrado a pensar a ciência e a relação que ela estabelece com a nossa condição moderna. Teria a poesia portuguesa ignorado esse dado civilizacional e cultural básico que marcou e marca tão profundamente o nosso quotidiano? Raríssimos nomes escreveram a partir dessa experiência dilacerante que se prende com o modo como a ciência destronou certezas e convicções. O conjunto de nomes não nos permitiria fazer uma antologia de vulto e interesse. Poderíamos citar Vitorino Nemésio, António Gedeão, ou, mais recentemente, Manuel António Pina. Poderíamos, lá atrás, convocar a figura de Pessoa, em particular o seu heterónimo Álvaro de Campos. Mas não há antologia nenhuma da poesia portuguesa do século XX - que é o século da ciência, diga-se o que se disser, dadas as suas figurações mais trágicas e inquietantes -, que não exija ou não seja perpassada pela presença ou ausência de Pessoa. Porém, a densidade e dimensão de tal antologia seria quase irrelevante.
A pergunta, com tonalidades sociológicas óbvias, será afinal esta: porquê? Não responderei aqui a ela. Mas é manifestamente sintomático que a poesia possa ser assimilada ao monstruoso em declínio, a uma certa pulsão arcaica, tribal, antecedente, talvez perigosa porque remissível para o não categorizável, para aquilo que escapa, para a fluidez mercurial do texto e dos seus desígnios (também eles de aferição improvável). Continuamos a fazer essa associação, e é essa associação a algo agónico que nos seduz tanto em poetas como Herberto Helder, justamente porque, em Herberto, encontramos essa pulsão vital por algo que transborda, que não é modelável pelos regimes de classificação e mobilização que a ciência e o desencantamento do mundo moderno trouxeram. Se Hölderlin se despede ainda à beira do Neckar desse mundo em que os deuses recuam, é também porque, num poeta como Herberto Helder, a despedida se reatualiza e se ritualiza através de uma perspetiva sobre a linguagem e sobre o tempo que tememos ter perdido irreversivelmente. Atravessámos a fronteira do respirável, poderíamos dizer num idioma próximo ao de Hölderlin.
Atravessámos há muito essa fronteira, e foi a ciência e os seus híbridos que nos mostraram como não podemos voltar para trás - isto a aceitar que o projeto moderno se esgotou, o que não é assim tao claro como a minha escrita poderá aqui sugerir. A poesia é o eco desse tempo já mudo, o eco de um canto, o símile de uma demora que atravessa a má- consciência do presente. Num livro como aquele que me proponho recensear, essa sensibilidade parece percorrer os seus melhores momentos. Porfírio Silva escreve poemas que vêm depois da Razão e da sua trágica inscrição no mundo, e fá-lo como quem sabe que poderá estar a trilhar um caminho improvável, de onde a poesia portuguesa se parece ter eximido. A ousadia estará porventura numa vontade em libertar-nos de um certo sono dogmático que se prende, afinal, com o modo como permanecemos distantes do mundo secularizado que a ciência nos legou, no qual a poesia se assemelha a uma inconsequente resposta, a uma hipótese de sentido não inteiramente esgotada, mas pouco recetiva a presentismos ou afirmações de contemporaneiade que não sejam aquelas que a disforia permite.
O poeta é aquele que, usando a metáfora arqueológica, pressente uma morfologia de cidades escondidas ou subterrâneas jazendo sob a tranquila rotina do seu escritório: «Há trinta e três cidades subterrâneas / no meu escritório / de casa. // Não resulta tão certo número de cidades subterrâneas / da idade exacta de qualquer deus / na terra» (p. 13). Mas mais que esse labor subterrâneo, esse resgate de cidades invisíveis ou incompletas, dir-se-ia que a linguagem procurada é antes o limite do que pode ser explicado. Não se trata tanto de nomeação (o que não pode ser nomeado), mas antes de explicação e seus limites. Assim, logo após o poema «Cidades Subterrâneas», Porfírio Silva faz incluir no seu livro um outro que se intitula «A explicação do mundo», onde escreve: «Se o axioma da conservação da continuidade explicasse o mundo / e o demónio de Laplace conhecesse os estados iniciais / de todas as partículas e todas as forças / de que é composto o universo, / então os modelos de funções analíticas explicariam / a génese e mutação das formas / o nascimento e a morte dos alicerces / o gérmen de fissura nas caves da construção / a multiplicação dos exércitos de um homem só / as crianças com uma face que ri e outra que chora / e os lagos como o de Balkashe: metade é salgado, metade é doce / os peixes de água doce na metade salgada / os peixes de água salgada na metade doce. / Mas não explica» (p. 14). É neste «não explica» que estará porventura essa alteridade ou diferença que a poesia procurará fazer reverberar.
«Monstros Antigos» não é assim um livro de poesia sobre os efeitos cognitivos ou políticos que a ciência nos legou, mas um livro sobre o que está nos limites ou nos interstícios desses efeitos. É sobre a «clareira da ausência» (p. 15) que parece abrir-se a cada passo neste mundo secularizado e ateu (a primeira civilização ateia de que há memória). Trata-se de um lugar onde a poesia só pode assumir a função de uma metafísica secular, como nos diria certamente Wallace Stevens.
Este mundo que forças históricas obscuras ergueram, onde ninguém «dorme debaixo da metafísica» (p. 32), e onde o humano se degrada como possibilidade, sentido ou expectativa, a poesia é o topos do que talvez já não possa acontecer. Uma negatividade que é, porém, uma afirmação, ainda que toldada pela melancolia e pela constatação de que todas as línguas se sujaram, ou que, no limite, agonizam ou estão mortas: «E afinal todas as línguas humanas são já línguas mortas» (p. 33). Toda a poesia que ainda resta revolve-se sobre um magma de coisas feitas, ditas, acabadas, esquecidas. Uma representação sobre outra representação, sobre outra representação ainda. Toda a poesia, hoje, é fundamentalmente ecfrástica, procurando encontrar o contra-campo e o fora-de-campo nesse território de imagens que ameaçam o tempo e o espaço com uma promessa de transparência. Assim é este «Monstros Antigos». Poemas como «Retrato da Princesa Joana Santa» (pp. 8-9), «Capelas imperfeitas» (pp. 50-51) ou «De seus labirintos digo» (p. 56), denunciam esta procura meta-representacional que parece atravessar todo o livro de Porfírio Silva.
Uma das implicações mais notórias desta dimensão ecfrástica e meta-representacional é de cariz político. Como fazer a linguagem e a pólis (elas são mutuamente constitutivas) num tempo de esgotamentos e premissas contaminadas pelo desastre da história? O autor não responde à pergunta, mas ergue parábolas, analogias, incursões onde articula o self com uma lei moral que parece, em todo o caso, ausente. Sintomático disso mesmo é um poema como «Da prudência», onde a phrónesis aristotélica é também uma restituição do valor da palavra: «desde que a palavra chegou à cidade / e nada nunca mais da dureza do mundo lhe foi indiferente» (p. 46). Sintomático disso mesmo é a inarticulação entre emoção e razão, sangue e território, que se traduz em poemas como o que cito aqui em toda a sua extensão: «Que interessa o meu medo? / O meu medo não é assunto da cidade. / Da cidade é a palavra / porque as linguagens privadas não existem / e os muros, becos e pontes / essas estruturas basilares dos locais / andaimes do que é inteiramente público / só tem uma matéria: palavra. / Não cuides do meu medo / o meu medo é uma lavoura da casa / e não devem plantar-se em terra / bacelos de videiras marinhas» (p. 38). A referência implícita a Wittgenstein é decisiva: toda a linguagem é pública. A pólis é o seu lugar, e a inversa também é verdadeira: a linguagem é o lugar da pólis. Não haverá poesia senão aquela que essa dimensão pública consentir. Não haverá outra coisa senão poemas políticos, mesmo quando as ilusões da pessoalidade se parecem querer sobrepor aos desígnios da cidade. É Seamus Heaney que nos sugere algures - e cito de memória - que o fim da arte é a paz. Porfírio Silva poderia subscrever esta afirmação, dizendo-nos o mesmo mas de outro modo: o fim da arte é a cidade, essa ecologia da palavra e da poesia.
Luís Quintais