22.11.10

pacifismos e outras narrativas


(Foto de Juan Medina, da Reuters)

A fotografia acima é publicada por Carlos Botelho, d'O Cachimbo de Magritte, para ilustrar o que chama "zelo repressivo".
O Público escreveu, a propósito: «Os manifestantes anti-NATO concentraram-se esta manhã no cruzamento entre as avenidas Infante Dom Henrique e de Pádua com o objectivo de cortar a circulação no sentido da Estação do Oriente. Deitaram-se no chão da via, acorrentados e pintados de vermelho. As autoridades despacharam quatro carrinhas, tendo cortado o trânsito na área circundante e procedido à remoção dos manifestantes da estrada.»
Primeira nota: há quem tenha querido engolir o truque da vermelhidão. Dá "bom aspecto" tanto sangue para sugerir violência policial. "Pena" que seja tinta que os manifestantes levaram para impressionar.

No já citado post, ainda se faz uma ligação para o local onde o 5 dias chama a atenção para dois vídeos sobre a mesma manifestação. No vídeo que fica aqui abaixo é lido um comunicado dos participantes naquela acção. A acção auto-qualifica-se de desobediência civil. Dizem que optaram pela desobediência civil por, dessa forma, obterem um "efeito mais claro". Dizem que a desobediência civil é uma forma de exercício da cidadania, quando o Estado viola direitos e princípios fundamentais. Associam essa opção à impossibilidade da liberdade. Invocam o direito de resistência previsto na Constituição da República. Dizem que, embora não usando da força, resistirão a qualquer ordem que ofenda os direitos, liberdades e garantias. Os "políticos e militares que constituem a NATO" violam princípios fundamentais e "cometem crimes contra a vida". Depois lembram-nos que Portugal entrou para a NATO no tempo de Salazar, quando aqui se vivia em ditadura, pelo que a NATO não é democrática, dizem. Questionam a legitimidade da NATO invocando a invasão do Iraque e a guerra no Afeganistão, que consideram injusta. Dizem que "esta democracia" chegou a um "estado de ruína". (Achando que o meu resumo pode ser tendencioso, podem partir directamente para o vídeo.)


As declarações constantes deste vídeo representam uma parte não dispicienda da "ideologia informal" de certas correntes "alternativas". Trata-se de uma mistura heterogénea de desprezo pelas democracias que temos (a invocação do direito de resistência navega na ideia geral de que vivemos debaixo de um regime repressivo, mesmo ditatorial), de pacifismo simplista (há uma via directa para um mundo em paz, que só não é trilhada devido à maldade dos "políticos e militares que constituem a NATO", quer dizer, dos governos democráticos dos países membros), de renúncia à análise (exemplificada pela mistura da invasão do Iraque com a guerra do Afeganistão, passando ao lado do envolvimento da ONU naquilo que chamam uma guerra injusta), de vistas curtas sobre a realidade (o que esperam que aconteça de bom no Afeganistão quando os sacanas dos ocidentais de lá saírem? ou isso "não é da nossa conta"?). Esta ideologia iluminada é bem ilustrada por uma frase "lapidar" da voz que funciona como porta-voz do grupo no vídeo acima: «É preciso pôr em evidência que hoje em dia a democracia não é mais do que a articulação entre o estado de guerra de um lado e o fascismo financeiro do outro.» Ficamos à espera que nos expliquem qual é a outra democracia que nos querem oferecer. Só esperamos é que não nos imponham essa "outra democracia" pelos mesmos métodos "não violentos" que outras utopias usaram ao longo da história.

Devo confessar que estou um bocadinho cansado de iluminados que continuam a querer vender-nos o céu na Terra, já e fácil, como se a comunidade dos humanos não fosse muito mais complexa do que isso. A NATO, com os seus erros e imperfeições, é um instrumento de coordenação de esforços de segurança a nível internacional. Deve evoluir, talvez deva vir a desaparecer no futuro, já que foi efectivamente criada noutro quadro e com outro horizonte. Mas não se fazem e desfazem grandes organizações internacionais como quem come gelados na praia. A pulverização - cada um vai para seu lado - não é viável pelo menos enquanto a ONU não tiver os meios materiais e políticos para garantir a segurança global. E isso não está para breve. E os europeus em particular, pouco dispostos como continuam a estar para investir na sua própria segurança, não podem de ânimo leve enxotar os americanos. O mundo continua perigoso, na maior parte dos países não deixam os "alternativos" fazer "desobediências civis", na maior parte do mundo os manifestantes não precisam de se pintar de vermelho antes de irem para as manifestações (há lá quem os "pinte").

No tempo da "guerra fria" já nos debatemos com várias concepções muito diferentes de "pacifismo". Havia um pacifismo ingénuo, anti-política, que achava que a guerra estava nas armas. Quando isso não é verdade: a guerra está na política, na vontade de usar as armas; a fraqueza de uma das partes em termos de armamento pode ser um convite à guerra, um convite aos fortes para usarem as suas armas. Havia um pacifismo enviesado - bem caracterizado por aquela declaração de Mitterrand: "os misseis estão a Leste, os pacifistas a Oeste". Era o pacifismo que servia, de bom ou meu grado, os interesses do bloco soviético. E havia um pacifismo político da esquerda democrática, que queria medidas concretas de criação de confiança, desarmamento progressivo e mútuo - e, ao mesmo tempo, democratização, como última e única verdadeira garantia de paz. São caminhos diferentes que continuam a desafiar o mundo. É aí que o debate concreto acerca da construção da paz tem um sentido democrático. É nesse debate que a agitação da rua, só por si, não tem nada de interessante a dizer. Por muito que console as consciências radicais da malta que genuinamente sofre com o estado do mundo. Nessa procura concreta, que não faz de conta que é simples o que realmente é complexo, os contributos de alguns dos "políticos e militares" desprezados pelos manifestantes são mais relevantes para paz do que a facilidade em invocar, por dá cá aquela palha, o direito à resistência e à desobediência civil.