Às vezes tenho medo de coisas que sei que são possíveis - e que, além de possíveis, estão aí ao virar da esquina, debaixo do manto diáfano das palavras mansas dos dias correntes, prontas a fazerem-nos habitantes do inferno se a circunstância se apresentar. Uma dessas coisas é o uso de um único olho para ver planos diferentes da realidade. Exemplo: querer julgar um artista pelas suas ideias políticas. Ou vice-versa, se quiserem. Saramago foi um caso: (pre)conceitos acerca do seu percurso político interpuseram-se demasiadas vezes na apreciação da sua obra literária. Umas vezes para a apreciar, outras vezes para a depreciar. Como, neste caso, estou no grupo dos que têm opiniões muito diferentes acerca dos dois planos do mesmo homem, aflijo-me com essa redução, com esse rebater de todas as faces do cubo num único plano.
Um outro caso recente que ocasionou tal tipo de operação de rebatimento é o da atribuição do Prémio Nobel da Literatura a Mario Vargas Llosa. Já de si não é linear a apreciação da intervenção política de Llosa, que vive num mundo diferente do de certos europeus que o julgam como se ele votasse na freguesia da Lapa em Lisboa, quando a sua América tem sido muito mais complexa do que isso. Mas insuportável foi ver a pressa de certa esquerda a condenar o seu pensamento, que, concorde-se ou não, é afinal o pensamento de alguém que preza a liberdade e tem procurado defendê-la, mesmo que as suas opções nem sempre tenham recoberto as nossas sobre os mesmos assuntos.
Em geral, esta pressa em confundir arte e política é um dos tais fenómenos que me metem medo - por nesse fenómeno se esconder o germe do que seria o totalitarismo se as circunstâncias se dessem. Quando vejo essa confusão começo a ver, nas caras de comentadores que vão por esse caminho, a facies dos polícias de fardas castanhas ou negras que a história conhece em muitas formas. E tremo.
Tudo isto me foi relembrado pelo texto Um ataque injusto e gratuito, n'A Terceira Noite, de Rui Bebiano.