19.11.10

o que podem as rotundas interessar a um filósofo?

(Foto de Mary F. Calvert, para o The New York Times)

Uma rotunda pode ser um objecto muito interessante para pensar. Espantados? Ora ouçam.

Uma rotunda, como a rotunda do Marquês em Lisboa, serve para criar uma certa ordem na circulação automóvel. Parece um objecto simples e parece tolo querer reflectir sobre rotundas. Só que, por vezes, as aparências iludem. Afinal, como funciona uma rotunda?
Em primeiro lugar, a rotunda fornece um constrangimento material: não se pode simplesmente ir em frente, para prosseguir em segurança é preciso contornar. Em muitas rotundas, as suas próprias características físicas impedem que se continue simplesmente em frente. Desde logo, isto quer dizer que há um "detalhe" do mundo físico que foi manipulado para modificar o comportamento humano. Aquele "objecto" é mais um "dispositivo", algo que serve uma finalidade, que foi feito e colocado em determinada posição com um propósito específico.
Em segundo lugar, que a rotunda funcione como se espera requer que os utilizadores reconheçam uma certa norma. No caso de Portugal, a norma manda que se contorne a rotunda pela direita. No caso de outros países, que se contorne pela esquerda. A rotunda só funciona devidamente porque a generalidade dos seus utilizadores conhecem essa norma (convenção: tanto faz circular pela direita como pela esquerda, desde que todos façam do mesmo modo) e respeitam-na. Mesmo assim, é possível que, em circunstâncias especiais, reconhecíveis apesar de dificilmente antecipáveis, se possa fugir a essa regra: um carro da polícia ou uma ambulância, em caso de perturbação muito grave, poderão circular na rotunda em sentido inverso. Isto quer dizer que a rotunda, como dispositivo, integra um aspecto "mental", uma norma, que não está talhada em nenhum aspecto material do mundo, existindo no ordenamento institucional: faz parte do código da estrada, que é uma lei, garantida por mecanismos institucionais mais gerais que estão articulados com muitos outros aspectos institucionais (outras leis, polícias, tribunais, penalizações possíveis, etc.).
A rotunda exemplifica, deste modo, uma característica talvez específica das sociedades humanas: estarem organizadas com o apoio de "artefactos de coordenação" em que "aspectos materiais" e "aspectos mentais" do ambiente são articulados de forma específica para se obter um certo tipo de ordem.

Se soubermos superar a generalizada falta de interesse pela profundidade dos detalhes, se formos capazes de interrogar o que parece evidente ou imediato, perceberemos que o "exemplo da rotunda" só é simples devido à nossa habituação. Não há presidente de câmara que se preze, por esse Portugal fora, que não tenha semeado rotundas como cogumelos, é certo. Só que... Vejam esta notícia: o pessoal da "outra banda do rio" está a descobrir as rotundas - e está um bocado às aranhas com elas, como se lê no The New York Times:
Traffic is going in circles. Armed with mounting data showing that roundabouts are safer, cheaper to maintain and friendlier to the environment, transportation experts around the country are persuading communities to replace traditional intersections with them. There’s just one problem: Americans don’t know how to navigate them. “There’s a lot of what I call irrational opposition,” said Eugene R. Russell Sr., a civil engineering professor at Kansas State University and chairman of a national task force on roundabouts, sounding mildly exasperated in a telephone interview. “People don’t understand. They just don’t understand roundabouts.”
O jornal lembra mesmo que o cinema já brincou com esta incapacidade para conduzir em rotundas, com potenciais efeitos trágico-cómicos (cena de European Vacation).

Afinal, uma rotunda pode dar que pensar...

(Obrigado, Matthijs, por me teres sinalizado a notícia.)