27.3.10

da linguagem comum


O filósofo Donald Davidson (1917-2003) começa o seu ensaio “The Method of Truth in Metaphysics” (1977) com a seguinte frase: “In sharing a language, in whatever sense this is required for communication, we share a picture of the world that must, in its large features, be true.” Vamos lá ver o que é que isto interessa aqui e agora.

Davidson insere-se numa linha de investigação filosófica que toma como objecto a linguagem comum. Como escreveu John Austin, outro filósofo desta linha, que teve há algum tempo em Portugal um invulgar direito de antena popular proporcionado pelo gato fedorento RAP, "a nossa comum provisão de palavras incorpora todas as distinções que os homens, no decurso de muitas gerações, verificaram ser vantajoso traçar e as conexões que verificaram ser vantajoso assinalar: são seguramente mais numerosas, mais credíveis - uma vez que passaram o longo teste da sobrevivência dos mais aptos - e mais subtis, pelo menos em todos os assuntos práticos correntes, do que qualquer outra que tu ou eu possamos conceber sentados nos nossos cadeirões - o método alternativo preferido". Assim sendo, analisar a linguagem comum resulta em analisar a realidade: "quando examinamos o que havemos de dizer e quando, que palavras haveríamos de usar em que situações, não estamos a olhar apenas para palavras (nem para "sentidos", o que quer que isso seja), mas também para as realidades, para falar acerca das quais usamos as palavras: estamos a usar uma pronunciada capacidade das nossas palavras para penetrar a nossa percepção dos fenómenos - embora não como um árbitro definitivo". [1]

Ora, para Donald Davidson [2], a existência de uma linguagem que serve para comunicar, prova que os falantes que partilham essa linguagem também partilham uma visão do mundo que, em linhas gerais, é verdadeira. Davidson coloca no foco da sua análise a actividade interpretativa, consistindo em procurar compreender o discurso de outros falantes como compreensão daquilo em que eles acreditam: é esse intérprete que, para compreender o discurso alheio, tem de partilhar com o autor desse discurso uma visão do mundo globalmente correcta. Vejamos o argumento.
Acreditar em alguma coisa, e identificar e descrever essa crença particular, só é possível dentro de um sistema alargado e complexo de crenças inter-relacionadas. Por exemplo, que eu acredite que "uma nuvem está a passar em frente do sol" e descreva essa crença, só é possível sobre o pano de fundo de uma densa malha de outras crenças apropriadamente associadas com essa: que o sol existe, que as nuvens são feitas de vapor de água, que a água pode existir no estado líquido mas também no estado gasoso, ... , e assim sucessiva e indefinidamente.
Precisamente pela mesma razão, eu só posso compreender o que outra pessoa diz se o meu método de interpretação do seu discurso não supuser que o seu sistema de crenças é fortemente errado. Se eu suponho (por exemplo, porque ela o diz) que outra pessoa acredita que (A) = "uma nuvem está a passar em frente do sol", suponho que essa pessoa tem uma malha de crenças (α) relacionada com (A). E, para eu poder interpretar a crença dessa pessoa como sendo a crença em (A), tenho de supor que (α) seja suficientemente parecida com a minha própria malha de crenças relacionadas com (A). Isto é: interpreto a outra pessoa na base das minhas próprias crenças; eu só posso compreender o que os outros dizem se os interpretar como partilhando comigo um vasto (mesmo se não total) acordo acerca do que está relacionado com o que é dito. Mesmo para poder discordar de algumas das coisas em que o outro acredita, tem de haver uma ampla base de acordo entre nós: é sobre o pano de fundo das concordâncias que as discordâncias são inteligíveis. Não posso compreender alguém acerca de quem suponho que a generalidade das suas crenças são erradas.
Mas, o que me garante que o nosso domínio de acordo coincida precisamente com o que é verdade? Nada garante. Não posso garantir quais são as partes do domínio de acordo entre mim e os meus interlocutores que são verdadeiras: no entanto, muito tem de ser verdade para que algo seja falso. Davidson pretende demostrar isso com o argumento do "intérprete omnisciente", a que não vamos passar (até por o considerarmos falacioso, como já tivemos oportunidade de explicar noutro local).

O que me interessa aqui e agora é aplicar o raciocínio acima a uma comunidade política. Por exemplo, a democracia portuguesa. Se, como tem acontecido, continuarmos a rasgar a base de comunicação decente dentro desta comunidade, vamos acabar mal. Se vivemos no mesmo mundo, no mesmo barco – e se precisamos de nos entender acerca do que fazer para navegar melhor – não podemos continuar a julgar como basicamente errado quase tudo aquilo que afirmam e julgam os outros membros da nossa comunidade, como se eles vivessem noutra terra e pudessem ser completamente indiferentes à nossa sorte comum. Sob pena de perdermos de vista o próprio mundo que nos é comum e não espera parado que saibamos o que queremos. Grande parte da política portuguesa nos últimos tempos tem passado pela desqualificação da própria palavra dos agentes: distorcer, desconfiar, desqualificar, baralhar os planos (tornar conversas privadas em assunto político, por exemplo).

Continuar nesta linha de destruição do outro como interlocutor e pensar que o país pode ser viável dessa maneira - é como pensar que é possível existir um par de namorados ligado por um grande amor apesar de cada um julgar o outro absolutamente inconsciente, irrealista, mal informado, perverso, mentiroso, …

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REFERÊNCIAS

[1] AUSTIN, J.L., "A Plea for Excuses", in Philosophical Papers, Oxford, Clarendon Press, 1979 (para a terceira edição, sendo a 1ª edição de 1961; trata-se de uma reimpressão do texto publicado pela primeira vez em 1957), p.182

[2] , DAVIDSON,D., "The Method of Truth in Metaphysics", in Inquiries into Truth and Interpretation, Oxford, Clarendon Press, 1984 (republicação do original de 1977), pp.199-205