19.12.09

Ágora, o filme; Hipácia de Alexandria, a filósofa



Ágora, o filme, é oportuno. E deve merecer-nos aqui algumas palavras.
O filme centra-se largamente na figura de Hipácia, uma filósofa da Alexandria (século IV - século V da era cristã), uma figura importante no panorama intelectual do seu tempo. Contudo, no aspecto biográfico, esqueçam: não se sabe praticamente nada sobre a sua vida e obra. Todas aquelas peripécias pessoais, tanto as amorosas (como o episódio do sangue menstrual para mostrar a um aluno apaixonado a baixeza do corpo) como as científico-filosóficas (como a antecipação da hipótese kepleriana, heliocêntrica com elipses em vez de círculo) são possibilidades, são um esforço dramático para fazer de uma pessoa um símbolo de um círculo cultural e social que devia ter também algum peso político. Nem sequer se sabe se na altura daqueles acontecimentos dramáticos Hipácia seria ainda bastante jovem e bela (amada e odiada tanto pela sua inteligência como pelo seu encanto e beleza) ou já uma mulher madura (nesse caso admirada e odiada pelo seu brilho e poder).
(À esquerda: Hipácia de Alexandria, de Charles William Mitchell)

Parece, contudo, ser altamente credível que Hipácia seria uma figura de topo de um círculo científico-filosófico com uma actividade importante (designadamente, em matemática e astronomia), a escola de Alexandria, independente e diferente da escola de Atenas, mas não sendo sequer certo que forma teria essa "escola" (por exemplo, se teria um reconhecimento e um apoio formal da administração imperial). A sua orientação filosófica seria neoplatónica, uma herdeira da grande cultura antiga, religiosa e culturalmente pagã, provavelmente convivendo com práticas mais ou menos mágicas (o que faz com que os cristãos tivessem, tecnicamente, alguma razão em a acusar de "bruxaria").


(À direita: Hipácia de Alexandria, de Onorio Marinari)
O que é certo, e isso o filme mostra bem, é que aquele foi um momento em que os cristãos agiram como bárbaros: porque agiram pelo braço brutal da populaça e com desprezo pela cultura (designadamente, os livros da segunda biblioteca da cidade); porque em termos religiosos estavam numa fase de exclusivismo (não queriam liberdade de culto, queriam que o seu culto fosse o único admitido); porque estavam a minar o Estado, tomando de assalto o poder pelo desvio da religião, sobrepondo a filiação religiosa à estrutura política da comunidade (fazendo um uso terrorista das "conversões" dos dignitários imperiais). Tudo isso é histórico e é oportuno lembrar, neste tempo em que muitos cristãos ocidentais acusam outras religiões dessas práticas. (Acusam com razão, não podem é falsear a história e esquecer que também os seus antecessores fizeram essas experiências.)

Do ponto de vista icónico, o filme faz (embora com rigor histórico, penso eu) uma identificação subtil entre a imagem dos cristãos militantes que "policiavam" a ofensiva (fazendo de tropa de choque do movimento) e a imagem que o ocidente tem hoje dos radicais islâmicos (o tipo físico e as roupas, nomeadamente, são comparáveis, o que não é de estranhar atendendo aos grupos étnicos que ocupam as paragens geográficas em causa).

O filme é político, de forma mais estrita, ao fazer reflectir sobre o uso da religião para efeitos políticos. Quem, como eu, já teve a experiência de, numa aldeia do norte deste país, estar cercado numa escola, onde tinha ido para assistir a uma sessão de esclarecimento de um partido político de esquerda, partido esse que nem sequer era o meu, tendo de ser daí "resgatado", sente aquela fúria "religiosa" da populaça de uma maneira muito especial.
O filme, como filme, não é brilhante. Mas vale a pena. É um filme útil para fazer pensar. O que, hoje em dia, faz muita falta.

Leitura recomendada: Clelia Martínez Maza, Hipatia, Madrid, La Esfera de los Libros, 2009