«Uma outra vez, durante o jantar, os raios de um esplêndido pôr-de-Sol caem sobre a mesa dos “russos distintos”. Haviam corrido as cortinas das portas da varanda e das janelas, mas sobrou algures uma fresta, através da qual um clarão vermelho, frio, mas deslumbrante, abre caminho e fere justamente a cabeça da srª Chauchat, de maneira que, na conversa com o compatriota de peito sumido, à sua direita, ela tem de resguardar os olhos com a mão. É um incómodo, mas pouco grave; ninguém se preocupa, a própria interessada nem sequer parece reparar na pequena contrariedade. Mas Hans Castorp descobre-a através de toda a sala. Observa-a durante alguns instantes. Examina a situação, acompanha o caminho do raio e fixa o ponto de onde incide. É da janela ogival, lá atrás, à direita, no canto entre uma das portas da varanda e a mesa dos “russos ordinários”, muito distante do lugar da Mme. Chauchat e quase tão afastado do de Hans Castorp. Toma uma decisão. Sem proferir qualquer palavra, levanta-se, com o guardanapo na mão, passa, diagonalmente, por entre as mesas, atravessa a sala, une cuidadosamente as cortinas cremes, certifica-se, com um olhar por cima do ombro, de que o clarão do poente já não pode entrar e de que Mme. Chauchat está livre, e, esforçando-se por parecer indiferente, volta à sua mesa. Um jovem atencioso que faz o necessário, já que mais ninguém se lembra de fazê-lo. Muito poucos notaram a sua intervenção; mas a srª Chauchat sentiu-se imediatamente aliviada e virou-se; conservou essa posição até que Hans Castorp alcançasse o seu lugar e, de novo sentando-se, olhasse para ela; depois do que lhe agradeceu, com um sorriso cheio de uma amigável surpresa, isto é, avançando um pouco a cabeça, sem propriamente a inclinar. Ele retribuiu com uma ligeira mesura. O seu coração quedou-se imóvel, parecendo ter cessado de pulsar. Somente mais tarde, quando tudo terminara, se pôs a martelar, e só então Hans Castorp percebeu que Joachim tinha os olhos discretamente cravados no prato, ao mesmo tempo que observou que a srª. Stohr dava uma cotovelada ao Dr. Blumenkohl e que o seu risinho afogado procurava olhares cúmplices em toda parte...
Relatamos factos quotidianos, mas o quotidiano torna-se estranho quando se desenvolve em terreno estranho.»
Thomas Mann, A Montanha Mágica