Servem para quê as palavras?
Para mover o mundo de tal modo que aquele sítio desejado nos entre pela nossa rua dentro, oferecendo-nos uma proximidade onde as pernas não seriam capazes de nos levar?
Para mexer naquelas partes dentro das pessoas que não vamos tocar, por respeito, mas cujo estado disposicional influi muito na possibilidade de chegar perto dessas mesmas pessoas sem ser mordido?
Para criar os deuses que surgem quando a vida se complica, e para matar pelo esquecimento os deuses que não cabem no nosso mundo quando voltamos a poder pensar sem medo e sem fome e sem frio?
Para imaginar que são inimigos os amigos, e amigos os inimigos - e para reconhecer como amigos os que o são?
Para jogar xadrez mentalmente, como o xadrez às cegas, em que os jogadores jogam "de cabeça" sem tabuleiro e sem peças físicas (o xadrez é uma actividade extremamente formalizável), mas numa variante em que todas as reflexões estratégicas para as jogadas seguintes têm de ser verbalizadas?
Para ler alto aos netos as Investigações Filosóficas de Wittgenstein e dizer-lhes que poucos romancistas alguma vez se deram ao trabalho de escrever um romance e, ainda na mesma vida, escrever outro a desdizer tudo o que dissera o primeiro - como Wittgenstein fez ao Tratado Lógico-Filosófico com as posteriores Investigações Filosóficas?
Para conversar com o pobre acerca da caridade, apenas para testar se a fome dele já é tão grave que o obrigue a aturar as nossas prelecções?
Para que servem as palavras? Para nos dar de comer ou para nos entreter quando a fome já não se aguenta?
Para que servem as palavras? Para os nossos queixumes, para usar os queixumes como manifestações indirecas e rebuscadas de ternura, como o pescador que não chega a lançar o isco à água mas canta, canta, canta para os peixes do mar, dispensando-os de ouvir sermões tão enrodilhados como os de António de Lisboa no dizer de Vieira?
E por qual razão não chega a ser viável dizer para que servem as palavras?