Ontem fomos ao Teatro Aberto à estreia de Hannah e Martin, de Kate Fodor. O Hanna é de Hanna Arendt, o Martin é de Martin Heidegger.
Para alguns, Heidegger foi um grande filósofo, para outros um palavroso enfatuado. Em qualquer uma dessas categorias, foi um dos grandes do século XX. Enquanto Heidegger pactuou com o nazismo, sendo um admirador de Hitler, e agiu, enquanto reitor da Universidade de Freiburg, como um agente do regime, qualquer que fosse o grau de convicção com que agiu, Arendt, também ela uma pensadora destacada do mesmo século, era judia, assumiu (e sofreu) essa condição e reflectiu (nomeadamente) sobre o que aconteceu aos judeus por causa da Alemanha. E por causa de homens como Heidegger. A forma como Arendt compreendeu "a banalidade do mal", o facto de que não é preciso fazer grandes planos de maldade para fazer muito mal aos outros, bastando deixar-se andar e "fazer o seu trabalhinho sem importância", deveria tornar-lhe mais difícil aceitar as explicações de Heidegger. E por que haveria isso de ser importante?
É que Arendt foi discípula do professor Heidegger, a quem admirava e por quem tinha sido formada como pensadora. Arendt admirava a profundidade da filosofia heideggeriana. E Hanna e Martin foram amantes durante um tempo. E isso complicava ainda mais a possibilidade de encontrarem uma resposta deles para um magno problema teórico e humano: a filosofia de Heidegger tinha alguma coisa essencial a ver com o nazismo de Heidegger? Que o grande pensamento está sempre possivelmente à beira do abismo, já sabemos. Mas, naquele caso, que importância teve o abismo na própria formação do pensamento?
Não é fácil colocar estas questões em teatro. Kate Fodor não esteve mal nessa tarefa, se queria uma peça que pudesse ser vista por mais do que iniciados ao pensamento de Heidegger e de Arendt. O texto escolhe as figuras dramáticas essenciais para a colocação do problema: Martin Heidegger, a sua mulher (nazi dedicada ao partido e à carreira do marido), Hanna Arendt, o filósofo Karl Jaspers (que era amigo e admirador de Heidegger mas não lhe perdoou o nazismo). O essencial do teatro de ideias estás nestas personagens.
O actor Rui Mendes faz Martin, Ana Padrão faz Hanna. Rui Mendes está desigual nas duas partes do espectáculo. Na segunda parte, depois da guerra, tratado como nazi, Heidegger está a fazer as contas com o mundo do erro da sua participação política, a tentar mostrar que acreditou na pureza inicial do nazismo e de Hitler mas foi usado (e abusado) pelo andamento dos acontecimentos e que a sua "solução" não era a "solução final". Aí, Rui Mendes consegue mostrar um homem envelhecido, acossado, mas a dar luta, a resistir violentamente ao julgamento do seu nazismo, a mostrar que a sua culpa não é a do cúmplice. Já na primeira parte, onde a violência que era preciso fazer passar era outra, era a violência do pensamento de Heidegger, a atracção fatal de uma filosofia radical por ir à raiz, o apelo de um pensar que colocou a inteligente Arendt na dependência do professor - a essa violência do pensamento Rui Mendes não foi capaz de dar expressão. Faltaram-lhe olhos para isso. Não se via nos olhos do actor o fogo da personagem, apesar de essa culpa ser partilhada com o texto, que tão pouco é capaz de agarrar esse Heidegger.
Já Ana Padrão, como Hanna Arendt, está muito bem quase todo o tempo (apesar dos vários deslizes graves desta estreia), conseguindo representar bem a dupla face da sua personagem: a atracção da mulher inteligente, a inteligência da mulher atraente. Hanna perde a inocência com Martin, provavelmente em mais do que um sentido, e faz disso a força da sua personagem, na qual há um constante deslocar de carga entre bombordo e estibordo, balançada pelo movimento do barco no meio da tempestade. Mas o que guia sempre essa mulher é a força do seu pensamento, mesmo quando hesita, mesmo quando acusa Heidegger, mesmo quando o defende. E Ana Padrão permite-nos ver isso e tem, por isso, uma grande interpretação. O único erro da interpretação de Ana é que Hanna nunca envelhece naqueles anos todos, o que certamente teria tido a sua importância, até na relação com Heidegger: a rapariga fascinada tinha cedido o lugar à pensadora afiada - e isso haveria de ter consequências, para a relação entre ambos e para a independência de espírito com que Hanna fez coisas que sabia muitos não lhe perdoariam (como defender que o ex-nazi Heidegger deveria poder voltar a ensinar na Alemanha depois da guerra).
Irene Cruz, como mulher de Martin, e Luís Alberto, como Karl Jaspers, têm papéis menos pesados, mas muito importantes para este teatro de ideias com pessoas dentro - e desempenham-nos muito bem.
Uma noite bem passada, um espectáculo que valeu a pena. E que recomendamos. Para quem não esteja minimamente familiarizado com o tema, convém ir um bocadinho mais cedo e ler o programa, com materiais muito úteis.