O "inteligente Hans" era um cavalo que, no princípio do século XX, espantou o público dos espectáculos promovidos pelo seu dono: é que o cavalo mostrava-se capaz de realizar operações aritméticas simples. Por exemplo, as parcelas de uma adição eram escritas num cartaz de forma a que o cavalo as visse e ele batia então com os cascos no chão o número de vezes equivalente à soma correcta. Testes realizados mostraram que o cavalo só dava a resposta certa quando o observador do exercício sabia a resposta. Compreendeu-se assim que o cavalo detectava indicações involuntárias do observador (reacções faciais mínimas, por exemplo) quando atingia o número correcto. O Hans era de facto esperto, mas não por saber aritmética: antes por ser capaz de detectar pistas fornecidas involuntariamente pelo comportamento dos humanos, tendo aprendido que isso equivalia a uma recompensa.
O "erro da inteligência de Hans" exemplifica um tópico interessante em filosofa das ciências do artificial. Quando um programa de computador, ou um robot, exibe um comportamento que parece inteligente - há mesmo inteligência na máquina, ou a inteligência que a máquina mostra é apenas o que os humanos lá colocaram e reconhecem como seu?
Bom, a ideia não é alongar-me aqui em considerações de filosofia das ciências do artificial. Mas esta observação era necessária para introduzir o que aqui me traz.
Só há pouco tempo (falha minha) descobri outra obra do muito apreciado Miguel Rocha, Hans - O cavalo inteligente. Para uma apreciação da BD enquanto tal, há por aí críticas interessantes e mais ilustradas pelo conhecimento do que eu poderia fazer. Por exemplo, aqui, aqui, aqui, ou aqui. Mas não esse o ângulo pelo qual quero ler a coisa hoje.
O que venho aqui dizer é que partimos sempre para uma obra com uma pré-compreensão, um pré-conceito, uma expectativa acerca do que vamos encontrar. Quando já lemos o "Ensaio sobre a Cegueira" de Saramago e pegamos em "A Caverna" - temos (eu tive) uma forte desilusão. Que talvez não fosse tão forte se não conhecesse o autor. Outro tipo de decepção, talvez injustificada, foi a que senti com este Hans - O cavalo inteligente. O álbum é bom, como BD, e corresponde ao elevado padrão a que Miguel Rocha nos habituou. Só que, e aqui está o meu engulho, a leitura quase psicanalítica que nos é servida, por muito interessante que seja, deixa-me com pena que tenha deixado de lado questões mais "comezinhas" ligadas ao tema da inteligência não humana. Foi um encontro um tanto ou quanto falhado, por mea culpa. Não deixo, contudo, de aconselhar aos amantes de BD que, sem os mesmos pré-conceitos que eu, se lancem à leitura. Ou releitura.
(Publicado também aqui.)