«Os mais recentes historiadores da ciência entendem que, se se começar com a experimentação sem pressupostos teóricos, é mais provável que se descubram os mecanismos de Aristóteles que os de Galileu. Kant atribui as revoluções da ciência moderna à coragem de Copérnico em contradizer o testemunho dos sentidos.»
Susan Neiman, Evil in Modern Thought, 2002 (tradução portuguesa na Gradiva)
Um certo número de intervenientes no debate público do estado da nação tem-nos proporcionado um delicioso torcidinho estilístico, uma corda para salvação dos aflitos, um salve-se quem puder de última hora para quem não consegue evitar olhar para a realidade através do filtro do seu próprio pessimismo (mesmo quando esse pessimismo é puro artifício). Essa flor do estilo consiste em opor as estatísticas (frias e inertes, supõem) ao calor da sensação imediata (o verdadeiro saber, pretendem). Exemplo: “ A escola está melhor nas estatísticas, mas nós vemos que as escolas estão pior, porque o sentimos, basta visitá-las.” Em geral, o que incomoda esses debatentes é que, em muitíssimos casos, aceitar as estatísticas é ter evidência de quanto este governo do PS fez avançar o país. Embora, com frequência, adorem estatísticas quando elas mostram o que falta fazer.
O capitão daquela frota de argumentos sensacionistas é a acusação de que “o governo trabalha para as estatísticas, mas as pessoas não são números”. Não vale a pena tentar explicar a quem assim opina que as estatísticas e os indicadores são, as mais das vezes, o fruto (imperfeito, claro, mas que se espera perfectível) de um trabalho aturado, longamente refinado em comunidades ao mesmo tempo mais ou menos especializadas e mais ou menos alargadas, distribuídas por muitos lugares deste mundo, com o fito de tentar ver mais longe e mais fundo do que a espuma dos dias. E com o fito consequente de nos ajudar eventualmente a fazer melhor. Agir a longo prazo e não apenas para amanhã. Mas eles não, eles querem é as sensações do que está à frente dos seus próprios olhos. Sem números pelo meio.
Bastaria dizer-lhes que, pela bitola que usam, a Terra ainda é o centro do universo e o Sol gira à nossa volta. Não é isso que, cada dia, os nossos olhos vêem claramente?
(republicação)