23.4.08

modernizar as relações laborais


Este é um assunto que muito nos interessa. O governo acaba de tomar novas iniciativas nesta matéria. Haveremos de dizer aqui alguma coisa sobre isso, mas só depois de nos informarmos melhor. Entretanto, como introdução, reproduzimos a seguir um texto publicado a 3/11/2002 no Público. Aparece subscrito na qualidade de ex-Conselheiro para os Assuntos Sociais na Representação Permanente de Portugal junto da União Europeia. Uma vez que andam por aí alguns a dizer que estes e aqueles defendem hoje o que atacaram ontem, exponho aqui o que disse há uns anos e não me importo que se compare o que escrevi então com o que hei-de dizer agora. Um destes dias, à medida que o debate na concertação social for avançando.


DIREITO DO TRABALHO E DESENVOLVIMENTO SUSTENTÁVEL


1. É normal que seja disputável qual a melhor forma de articular, num dado momento, os valores protegidos pela legislação do trabalho com outros valores socialmente importantes. Admito, pois, que certos aspectos da legislação do trabalho vigente sejam considerados limitativos do desenvolvimento da produtividade e da competitividade das empresas - e rejeito que esse seja um problema "dos patrões". Mas há uma diferença importante entre a óptica da articulação dos valores a proteger e a tentação de usar uma reforma para reforçar fautores de conservantismo imobilista. Sendo a empresa uma comunidade de pessoas, está sempre presente a questão do poder, a qual, crucial em qualquer organização, o é de forma mais premente naquelas cuja racionalidade endógena é relativamente limitada. Ora, muitas empresas são território onde o "patrão" (e não o empresário ou o empreendedor) domina apenas pela "força", não gozando daquela fonte de autoridade que consiste em saber o que fazer para promover o bem comum - nomeadamente, ignora o que fazer para aumentar a produtividade (sua e dos outros) e a competitividade (real, a longo prazo).
Se, aqui, as intenções iniciais do ministro da tutela parece terem sido esquecidas, isso deve-se ao facto de esta direita continuar a achar que o poder de quem sempre o teve é "natural", enquanto as pretensões de ultrapassar o "modelo do salve-se quem puder" carecem de legitimação casuística. Como é nas relações de trabalho onde a questão do poder se apresenta da forma mais crua para a maioria das pessoas (das pessoas concretas cuja vida pode ser destroçada por acontecimentos que resultam da realidade da submissão no local de trabalho), o país precisa da inteligência e da determinação da esquerda - porque esta direita quer o caminho mais simplista e mais imediatista.

2. Que resposta dará a esquerda à questão do equilíbrio do poder dentro da empresa e no mundo do trabalho? Se falarmos em participação dos trabalhadores na gestão ou no controlo da gestão, os arautos da "modernidade" dirão imediatamente que o tempo da revolução já lá vai (confusão simples entre "reforma " e "revolução"). Imaginemos uma organização ligada a interesses empresariais alemães a opinar que a legislação laboral portuguesa devia ser flexibilizada para melhorar a nossa competitividade. Como interpretá-la? Um convite à importação do modelo alemão de co-gestão, onde trabalhadores e suas organizações têm um poder real na gestão das empresas e na regulação global do mercado de trabalho? Um convite a reflectir na utilidade de algum dos modelos de participação dos trabalhadores existentes em países europeus, visando dar conteúdo estratégico à noção de interesses comuns entre empregadores e trabalhadores e, por essa via, elevar o nível de racionalidade endógena do sistema?
Falando de aumentar a racionalidade endógena das empresas, significamos o desenvolvimento nessas empresas dos meios para compreender a situação de mercado em que se encontram, para definir objectivos ambiciosos mas realizáveis susceptíveis de mobilizar todos os agentes cujo interessamento importa, para organizar os caminhos materiais e imateriais de consecução desses objectivos, para manter um equilíbrio evolutivo entre esforço e retorno que satisfaça as condições de sustentabilidade do todo. Ora, um dos nossos problemas é a falta de agentes de racionalidade em largos estratos da actividade económica, enquanto certos "patrões" se constituem em factores privilegiados de delapidação dos meios de racionalização - em parte porque tardam(os) em compreender que os trabalhadores e as suas organizações podem ser agentes de racionalização.
Mas a resposta aos problemas que aí se colocam não pode ser alcançada sem a força do colectivo. Se a palavra "colectivo" assusta, pode dizer-se "mostremos todos maior responsabilidade em prol dos objectivos comuns, como produzir mais com os mesmos recursos, porque isso a todos convém". Mas isso, insisto, quer apenas dizer: reforçar o colectivo e o seu papel. O que passa por reforçar o poder dos trabalhadores organizados dentro da empresa.

3. Reforçar o papel do colectivo é reconhecer que as soluções têm de ser encontradas em conjunto - e que não caiem do céu directamente para a cabeça de empregadores impreparados. Para isso é preciso reforçar a negociação colectiva. Por exemplo, pelo alargamento das partes envolvidas. Os sindicatos terão razão em temer que se inventem "partes negociais" moldáveis para os substituir, mas, em muitos casos, a sua representatividade não cobre, por exemplo, os muitos que por malabarismos vários foram atirados fora do barco dos assalariados. E, assim, não se justifica o monopólio sindical da representação - até porque a diversificação dos actores talvez consiga diversificar os tópicos de negociação (outra forma de reforçar a negociação colectiva). Não parece, contudo, que favorecer o estreitamento do horizonte negocial (do sector para a empresa, por exemplo) contribua para reforçar o carácter racionalizador da negociação colectiva.
Reforçar o papel do colectivo é também admitir que o Estado age legitimamente se intervir para proteger os interesses legítimos que têm poucos meios para se fazer valer "espontaneamente". Quando a competitividade exigiria maior autonomia operacional do trabalhador, "o mercado" respondeu com o aumento do peso da subordinação por via de pressões informais (precarização nas suas múltiplas formas, internas às empresas ou derivadas do facto de a rede de empresas se ter tornado o verdadeiro quadro das relações de trabalho). Porque não alargar o campo de eficácia do direito de trabalho, dando aos tribunais um poder reforçado para requalificar o contrato de trabalho, quando ele (ou a ausência dele) tenha resultado de uma imposição da parte mais forte à parte mais fraca, numa forma infiel à relação efectivamente existente?
Conviria também alargar as possibilidades de gestão individual da flexibilidade, ligadas (por exemplo) ao desenvolvimento do direito à formação e à conciliação entre vida familiar e vida profissional. Talvez se pudesse fazer melhor para proteger a continuidade de uma trajectória de estatuto profissional, sem perda de direitos, quando essa trajectória inclui interrupções de carreira, formas atípicas de emprego, mudanças de emprego ou mesmo de carreira, regresso à escola, etc.
É ainda necessário ter em conta que o tempo disponível não é necessariamente tempo de repouso, que o trabalho projecta a sua sombra sobre o tempo disponível e que as obrigações da pessoa enquanto trabalhador não são as suas únicas responsabilidades. Se a flexibilidade é uma ameaça de subordinação acrescida - que é, por muito importante que ela seja para a competitividade das empresas - como se protegem os mais fracos em tudo isto? Talvez seja necessário reforçar as garantias processuais da parte mais fraca, para os casos em que as coisas podem correr mal, e não aligeirá-las, como se tem dito que é preferível.

4. Infelizmente, esta direita parece não perceber como seria importante para o país uma boa reforma da legislação do trabalho. Se percebesse, não desperdiçava a oportunidade fundamental que foi criada por iniciativa do anterior governo (sistematização que, além do seu valor intrínseco em termos de efectividade do direito, facilitaria um debate mais ordenado acerca das mudanças necessárias). Mas esta direita não percebe que uma boa reforma da legislação do trabalho nunca poderá ser aquela com que se identificam os que anseiam por uma "révanche" do capital contra o trabalho. Porque os que se alimentam dessa saudade não têm nada a dar à sustentabilidade real da economia portuguesa - porque nunca saberiam integrar-se na necessária coligação de vontades reformadoras dos que compreendem que a solução tem um traço comum com o problema: não será unilateral nem unidimensional.

[Sobre esta matéria, o Público brinda-nos com um título absolutamente mau, quer dizer, anti-jornalístico: UGT, CGTP e CIP contra e a favor de algumas das propostas de reforma da legislação laboral . Isto é mais ou menos como titular: "o SLB e o SCP ou empataram ou não empataram"...]