31.1.12

quem habita o teu bairro.


Arte de rua.


Hyuro, Valencia

Durão Barroso escreve a Passo Coelho.


As grandes novidades da Europa: rapar o fundo ao tacho + baralhar e dar de novo = é só fumaça e muita publicidade.



o peixe binário.

O que vos proponho agora é uma pequena reflexão acerca da cibernética da mitologia - ou será acerca da mitologia da cibernética?

Passo a transcrever um excerto de Claude Lévi-Strauss, capítulo 2 de Mito e Significado, originalmente publicado em inglês (Myth and meaning, 1987), resultado de uma série de palestras radiofónicas para o grande público. Existe em português, nas Edições 70, donde transcrevo. Os destaques são meus e têm a ver com o comentário que quero deixar depois.

Vamos agora considerar um mito do Canadá Ocidental sobre uma raia que tentou controlar ou dominar o Vento Sul e que teve êxito na empresa. Trata-se de uma história de uma época anterior à existência do Homem na Terra, ou seja, de um tempo em que os homens não se diferenciavam de facto dos animais; os seres eram meio humanos e meio animais. Todos se sentiam muito incomodados com o vento, porque os ventos, especialmente os ventos maus, sopravam durante todo o tempo, impedindo que eles pescassem ou que procurassem conchas com moluscos na praia. Portanto, decidiram que tinham de lutar contra os ventos, obrigando-os a comportarem-se mais decentemente. Houve uma expedição em que participaram vários animais humanizados ou humanos animalizados, incluindo a raia, que desempenhou um importante papel na captura do Vento Sul. Este só foi libertado depois de prometer que não voltaria a soprar constantemente, mas só de vez em quando, ou só em determinados períodos. Desde então, o Vento Sul só sopra em certos períodos do ano ou, então, uma única vez em cada dois dias; durante o resto do tempo a Humanidade pode dedicar-se às suas actividades.
Bom, esta história nunca aconteceu na realidade. Mas a nossa posição não se pode limitar a considerarmos esta história completamente absurda e a ficarmos satisfeitos ao taxá-la de uma criação imaginosa de uma mente entregue ao delírio. Temos de a tomar a sério e fazer a seguinte pergunta: porquê a raia e porquê o Vento Sul?
Quando se estuda minuciosamente o material mitológico na forma exacta em que é narrado, verifica-se que a raia actua com base em deter minadas características, que são de duas espécies. A primeira, é que a raia é um peixe, como todos os seus congéneres espalmados, escorregadio por baixo e duro por cima. E a outra característica, que permite à raia escapar com sucesso quando tem de enfrentar outros animais, é que parece muito grande vista de baixo ou de cima e extremamente delgada vista de lado. Um adversário poderia pensar que seria muito fácil disparar uma seta e matar uma raia, por ela ser tão grande; mas, enquanto a seta se dirige para o alvo, a raia pode virar-se ou deslizar rapidamente, oferecendo apenas o perfil, que, evidentemente, é impossível de atingir; e é assim que pode escapar. Portanto, a razão por que se escolheu a raia é que ela é um animal que, considerado de um ou outro ponto de vista, é capaz de responder – empregando a linguagem da cibernética – em termos de «sim» ou «não». É capaz de dois estados que são descontínuos, um positivo e o outro negativo. A função que a raia desempenha no mito é – ainda que, evidentemente, eu não queira levar as semelhanças demasiado longe – parecida com a dos elementos que se introduzem nos computadores modernos e que se podem utilizar para resolver grandes problemas adicionando uma série de respostas de «sim» e «não».
Apesar de ser obviamente errado e impossível (dum ponto de vista empírico) que um peixe possa lutar contra o vento, dum ponto de vista lógico pode-se compreender por que razão se utilizam imagens tiradas da experiência. Esta é a originalidade do pensamento mitológico – desempenhar o papel do pensamento conceptual: um animal susceptível de ser usado como, diria eu, um operador binário, pode ter, dum ponto de vista lógico, uma relação com um problema que também é um problema binário. Se o Vento Sul sopra todos os dias do ano, a vida torna-se impossível para a Humanidade. Mas, se apenas soprar um em cada dois dias – «sim» um dia, «não» o outro dia, e assim por diante –, torna-se então possível uma espécie de compromisso entre as necessidades da Humanidade e as condições predominantes no mundo natural.
Assim, dum ponto de vista lógico, há uma afinidade entre um animal como a raia e o tipo de problema que o mito tenta resolver. Dum ponto de vista científico, a história não é verdadeira, mas nós somente pudemos entender esta propriedade do mito num tempo em que a cibernética e os computadores apareceram no mundo científico, dando-nos o conhecimento das operações binárias, que já tinham sido postas em prática de uma maneira bastante diferente, com objectos ou seres concretos, pelo pensamento mítico. Assim, na realidade não existe uma espécie de divórcio entre mitologia e ciência. Só o estádio contemporâneo do pensamento científico é que nos habilita a compreender o que há neste mito, perante o qual permanecíamos completamente cegos antes de a ideia das operações binárias se tornar um conceito familiar para todos.

Excelente exemplo da penetração do pensamento cibernético na cultura intelectual da segunda metade do século XX. Impulsionado pelo fascínio pelo computador, o Autor pode ver um animal como um operador binário - e, mais ainda, pode ver que isso foi visto de forma mitológica antes de haver computadores ou de eles terem sido concebidos logicamente. Claro, a excitação é tanta que o Autor nem se atrapalha em reduzir um fenómeno como o vento que sopra a um problema discreto (sim ou não), quando, precisamente, o vento nos parece um daqueles fenómenos físicos que só no nosso espírito pode deixar de ser contínuo na sua variação. Trata-se, afinal, de escolher um ponto de vista. Tal como a circulação sanguínea: é contínua ou discreta? No coração, parece ser discreta: cada bombada, um evento circulatório; na extrema periferia, nos vasos capilares, uma circulação contínua. O contínuo e o discreto não se opõem absolutamente, na natureza; mas, num computador, essa oposição extrema-se, já que todo o controlo tem, no coração da máquina, de passar pelo carácter discreto (sim ou não, sem ambiguidade, sem meio termo) do finíssimo fluxo eléctrico. Para o famoso antropólogo, a raia e o Vento do Sul eram peças da grande máquina do mundo. Foi um sinal dos tempos - mas esses tempos não passaram.


aviso muito importante.

coisas da China.

30.1.12

arte de rua.






Know Hope, em Israel


Conselho Europeu - Declaração sobre o crescimento e o emprego

21:45

Os membros do Conselho Europeu, reunidos hoje informalmente em Bruxelas, emitiram a seguinte

Declaração sobre o crescimento e o emprego


Ao longo dos últimos meses, houve sinais incipientes de estabilização económica, mas as tensões nos mercados financeiros continuam a travar a atividade económica e o grau de incerteza continua a ser elevado. Os governos estão a envidar grandes esforços para corrigir sustentavelmente os desequilíbrios orçamentais, mas são necessários mais esforços para promover o crescimento e o emprego. Não existem soluções milagrosas. A nossa ação deve ser determinada, persistente e assente numa base alargada. Temos de fazer mais para tirar a Europa da crise.

Foram tomadas decisões para assegurar a estabilidade financeira e a consolidação orçamental: esta é uma condição necessária para regressar a níveis mais elevados de crescimento estrutural e de emprego. Mas, por si só, não é suficiente: temos de modernizar as nossas economias e de reforçar a nossa competitividade, para garantir um crescimento sustentável, o que é essencial para criar emprego e preservar os nossos modelos sociais; é também este o cerne da Estratégia "Europa 2020" e do Pacto para o Euro Mais. Estes esforços devem ser realizados em estreita cooperação com os parceiros sociais, no respeito dos sistemas nacionais dos Estados-Membros. Só haverá uma retoma do crescimento e do emprego se seguirmos uma abordagem coerente e assente numa base alargada, conjugando uma consolidação orçamental inteligente que preserve o investimento no crescimento futuro, com políticas macroeconómicas sólidas e uma estratégia ativa em prol do emprego que preserve a coesão social.

O Conselho Europeu de março dará orientações para as políticas dos Estados-Membros em matéria de economia e emprego, pondo em especial a tónica na plena exploração do potencial do crescimento verde e na aceleração das reformas estruturais, a fim de aumentar a competitividade e de criar mais empregos. Ao fazê-lo, deverá prestar a devida atenção às crescentes divergências entre as situações económicas dos Estados-Membros e às consequências sociais da crise.

Hoje, centrámo-nos em três prioridades imediatas. Sempre que possível, os esforços envidados a nível nacional serão apoiados pela ação da UE, nomeadamente canalizando melhor os fundos disponíveis da UE para o emprego e o crescimento, dentro dos limites máximos acordados.

notícias contra a bovinidade.

do fracasso das teorias económicas dominantes nas suas pretensões à cientificidade.



Sabendo que um individuo humano do sexo masculino toma a pílula contraceptiva podemos deduzir que ele não ficará grávido.
Mas será errado pensarmos que temos aí uma explicação para o facto de esse macho não ficar grávido.

(O argumento contra as ilusões da explicação estatística é de Wesley Salmon.)

Greekel, the monster.

Clicar na foto para ver melhor os líderes. A ver se conseguem descobrir "o nosso"...


Daqui.

29.1.12

poesia e ciência (1).


A insustentável leveza de quê?



Ao Gonçalo

“O poema não é mais verdadeiro nem mais
consciente do que uma teoria científica
(provavelmente, é-o menos) o poema não contém
atrito por definir o mundo ou desvendar a
metafísica. O atrito do poema tem a ver com o
corpo, a distância e a lentidão.”
Pedro Eiras – A Lenta Volúpia de Cair


Deixar cair uma maçã com toda a força;
Não estamos aqui pela gravidade, mas porque
Amamos o chão – a terra – se possível, metemo-la
toda na boca, perdi um bloco de notas que me
compraste no museu do Galileu, nele tinha notas sobre a
aflição e o atrito – a ligação entre poesia e ciência, a Vontade
de estar dentro de Ti. A maçã contínua cai – sem que
Newton ou um poeta suicida – Esqueci-me do número do
andar – tenham ainda o sabor da razão na boca, azedo e
verde, sem ter asas, nem querer voar:
A insustentável leveza de quê? O atrito do
ar enquanto desces e perdes toda a poesia e a
inocência, a vontade de cair naquilo que nunca será
ciência – falo da razão – 
está nos teus olhos, dentes e boca.

Nuno Brito, Créme de la Creme, Porto, Planeta Vivo, 2011




28.1.12

Robôs Pessoais.




neste dia em 1916 nasceu Vergílio Ferreira.

11:30

«Também tenho a minha parte de robot e não a nego. Mas sei que há outra coisa à minha espera e que só depois dessa é que não há mais nenhuma. Tenho apenas esta vida para viver, e seria quase uma traição que faltasse à sua entrevista – essa entrevista combinada desde toda a eternidade. Por isso eu a procuro à minha vida, em toda a parte onde sei que ela me espera com uma palavra a dizer. Os robots da loucura é que a ignoram, porque o mundo deles é o da transacção imediata, um mundo táctil, de objectos, como o das crianças.»

Vergílio Ferreira, Carta ao Futuro, 1958


relatório de um país ao triunvirato.




27.1.12

as minhas despesas não dão para a reforma.

O título deste post é a única versão autorizada das minhas declarações.
Suponho que possam agora compreender quão injustas foram as vossas reacções.




novas formas de oposição.




A polícia da cidade siberiana de Barnaul pediu aos procuradores públicos para investigarem a legalidade de um recente protesto em que dezenas de pequenos bonecos - ursos de pelúcia, figuras de Lego, personagens de South Park - "protestavam" com cartazes onde se lia, por exemplo, "Por eleições limpas" ou "Um ladrão deve ir para a cadeia, não para o Kremlin".

Realmente, precisamos construir novas formas de acção. Não necessariamente de oposição: novas formas de "posição". De joelhos, só, é que não dá.


Desenvolvimento da notícia: Doll 'protesters' present small problem for Russian police.

a cidade de Ammaia.

26.1.12

com base numa história verídica.

21:30



Ontem, para descontrair, fui ver Moneyball. Não acho que seja um grande filme, mas não me arrependo de ter ido.
Não obstante, acautelem-se: é de utilidade saber o mínimo sobre o funcionamento básico do jogo do basebol. Eu, que na adolescência vivi durante algum tempo numa comunidade onde se jogava basebol na rua, como aqui se joga futebol (ainda tenho taco, luva e bola, mas há muito tempo que não tenho oportunidade de dar umas tacadas), levava essa vantagem. Mesmo assim, há ali factores que só seriam mais adequadamente compreendidos sabendo mais do que eu sei sobre as tácticas do jogo.
Tirando isso, acho parcialmente errado que se diga que é um filme sobre o peso do dinheiro no desporto. Acho que está em causa algo muito mais interessante: até que ponto o conhecimento (neste caso, a estatística) pode dar a volta à compreensão "humanista" da forma como funcionam as pessoas e o mundo. O filme é, a meu ver, acerca de como a "intuição dos praticantes" e a "cultura do grupo" pode ser fintada pelo conhecimento aplicado, que tende a ver as pessoas e as organizações como máquinas, as quais podem ser estudadas sem grandes sentimentos e com muita análise. Infelizmente, acho que o filme não consegue transmitir esse aspecto com grande clareza. Daí que às vezes perca de todo o ritmo e se torne por bocados um tanto morno. Daí que se compreenda que a crítica diga que é um filme sobre o peso do dinheiro no desporto. Pois, também se podia dizer que o filme é sobre a história do basebol: mas não é, embora possa parecer.
A verdade é que é precisa muita ginástica para transmitir conceitos muito abstractos num filme popular. Poucos conseguem isso. Lembro um que conseguiu: Uma Mente Brilhante, que "explica" Teoria dos Jogos como se fosse um romance. Que não é.

não se pode negar que Durão Barroso esteja a fazer o que é necessário e urgente.



Comissão Europeia processa Portugal por não proteger as galinhas poedeiras.

Informa o Público: «A Comissão Europeia abriu um processo contra Portugal por infracção ao direito comunitário por não ter adoptado as novas normas de produção de galinhas poedeiras destinadas a melhorar o seu bem-estar.»

Ouvi dizer, mas não pude confirmar, que as poedeiras vão receber pensões mais baixas este ano, porque não têm estatuto de independência, como os bancos centrais.

[Este post é um post populista. Não deve ser levado a sério.] [A sério? E os outros posts deste blogue, devem ser levados a sério?!]

Daniela Ribeiro - Olho Biónico.

a minha prenda de natal para mim.


Acabou de chegar.
Vinda directamente do Japão. Anunciada, há mais de um mês, para o dia de hoje, chegou no dia de hoje.
Uma preciosidade. Qualquer dia explico.








ligações fora da era da técnica.


Por ordem cronológica.

O Tractatus Logico-Philosophicus, de Ludwig Wittgenstein, termina com a seguinte frase (tradução de M.S.Lourenço): «Acerca daquilo de que se não pode falar, tem que se ficar em silêncio.»

O meu livro acabado de sair, Podemos matar um sinal de trânsito?, termina com a seguinte frase: «Acerca daquilo de que se não pode ficar em silêncio, tem de se falar.»

O post de Pedro Eiras, Como se escreve um ensaio, no blogue da plataforma MILPLANALTOS, termina com a seguinte frase: «Sobre aquilo de que não se pode falar, deve-se.»

25.1.12

a ideologia dos incentivos.


Há quem defenda que o corte das prestações sociais (designadamente, por desemprego) é bom como "incentivo" ao trabalho. Chris Dillow analisa um pouco esse argumento, no seu blog Stumbling and Mumbling - no contexto da política britânica, mas de modo pertinente também para a lusa arena. Os seus argumentos centrais contra aquele "incentivo ao trabalho" são os seguintes.

Antes de tudo, o que falta não são incentivos ao trabalho, mas oportunidades (basta comparar o número dos que procuram trabalhar e as vagas existentes). Mas porque é que certos políticos dizem aquelas coisas dos incentivos? Dillow explica isso com "ideologia", claro (ideias gerais, e erradas, acerca das maravilhas dos mercados, nomeadamente o mercado de trabalho). Mas adianta mais qualquer coisa, em termos de enviesamentos cognitivos. E faz a seguinte lista.

A falácia da composição. Admitindo que algumas pessoas talvez pudessem encontrar um emprego se se esforçassem mais, o que é verdade para alguns não é necessariamente verdade para todos. Neste caso, se todos se esforçassem mais - não haveria ainda lugar para tantos esforçados!
O erro fundamental da atribuição (que consiste em sobrevalorizar o peso que têm, no comportamento das pessoas, as suas disposições internas ou personalidade, desvalorizando o peso do entorno a influenciar a acção). Neste caso, pessoas que estão em posição de encontrar um emprego desde que o procurem (o que conseguem depende apenas da sua disposição pessoal) convencem-se que isso será assim com toda a gente, o que não é verdade por razões "ambientais" (se há poucos empregos, os muitos que procuram não podem todos conseguir, e nem para todos basta estender o braço).
O efeito de halo (quando uma característica de uma pessoa ou objecto afecta a forma como vemos outras características da mesma pessoa ou objecto, embora nada justifique essa relação; explora-se este enviesamento cognitivo, por exemplo, quando num filme os "bons da fita" são os mais bonitos). Neste caso, Dillow está a criticar o seguinte argumento a favor de baixar as prestações: é justo que quem não está a trabalhar receba menos do que quem está a trabalhar. O efeito de halo aqui quer dizer o seguinte: mesmo que isso seja mais justo, não quer dizer que seja mais eficiente no que toca a resolver os problemas que enfrentamos.
O enviesamento para a acção. Os políticos querem "fazer coisas". Mesmo quando não podem fazer nada de relevante para um dado problema, querem fazer qualquer coisa. Com políticas restritivas, os governos não podem fazer grande coisa para aumentar a oferta de emprego. Mas têm de fazer qualquer coisa - e "dar incentivos" (daquele género mencionado acima) tem o ar de ser "fazer qualquer coisa".

Pode não se concordar com todos os pontos desta análise, mas que ela é desafiadora, acho que sim. O post original está aqui: The ideology of incentives. Vale a pena lê-lo, porque o que deixo aqui não é exactamente um resumo, mas mais uma leitura.

há sempre alguém...


... disposto a servir bolinhos e chá à censura.
Quando estas coisas acontecem - Pedro Rosa Mendes diz que foi censurado na Antena1 - há sempre quem desvie a conversa. Ou porque é o Sócrates (o Sócrates dá para tudo), ou porque a culpa é da falta de liberalização, ou porque as empresas públicas são uma lama, ou porque os políticos são todos iguais... Denunciar, clara e inequivocamente, a censura - isso é que não: opta-se sempre pela alternativa de desviar a conversa.
Por que será que liberais-tão-liberais-que-eles-são não olham, num caso destes, para o pão que alimenta as bocas da censura, a saber, o peso de interesses económicos angolanos em terra portuguesa, quando esse peso faz vergar as colunas (in)vertebrais dos que se agacham para não molestar o colonizador? Não é assim sempre, não é assim em todo o lado. A muitíssimo pública BBC, mesmo não sendo santa, não é a promiscuidade que muitos acham congénita ao serviço público. Os States têm serviço público de rádio e televisão e estes pecados de descarada manipulação são considerados pecados, ponto final, e quem meta a mão na massa para fazer o contrário terá de se explicar. E assim em muitos outros países. Nem tudo é igual, nem tudo chafurda na mesma lama: mas há sempre uns liberais-vale-tudo que sacam da justificação ideológica como quem saca da pistola para descartar um grito de alma que lhes seria exigível perante a canhestra censura.
Algum dia virá em que certas pessoas sejam capazes de dizer, sem rebuços, "censura nunca mais"? Ou terão sempre e ainda de se encolher atrás de cortinas ideológicas?

Hollande, a esquerda mole e a democracia normal.

11:45

François Hollande, o candidato dos socialistas franceses às presidenciais deste ano, fez no passado domingo um discurso que muitos consideram um novo arranque na corrida, depois de muitas hesitações e propostas pouco esclarecidas que tinham confundido o eleitorado. O “discurso de Bourget” centrou-se no “sonho francês”. Na medida em que Hollande está a lutar por ser reconhecido como o candidato capaz de mobilizar a esquerda, por descolar da etiqueta de “esquerda mole” que Martine Aubry lhe tinha colado durante as primárias, é curioso ver como o “sonho da esquerda” e o “sonho nacional” (francês, neste caso) se misturam. Um sinal dos tempos, sem dúvida.
Hollande atirou-se às canelas do mundo da finança desregulada, que definiu como o seu principal adversário, e anotou algumas das suas ideias para esse problema, por exemplo: obrigar à separação das actividades bancárias de crédito e de investimento, uma verdadeira taxa sobre as transações financeiras “com aqueles que na Europa a queiram”, um fundo de intervenção europeu, uma agência de notação europeia. É que, sem atacar essa frente financeira da economia, não vai ser possível voltar ao crescimento e ao emprego, cuidando da equidade, já que Hollande se compromete a controlar a despesa pública e a não aumentar globalmente o número de funcionários.
Embora não tenha usado muito tempo do seu discurso a falar explicitamente da Europa, Hollande não a esqueceu. Como vimos antes, o seu “principal adversário” tem de ser combatido a nível da União. Mais explicitamente, o regresso ao crescimento passa pela Europa. Segundo o candidato socialista, a França tem de “reencontrar a ambição de mudar a orientação da Europa” (subentende-se: ao contrário de Sarkozy, que vai na onda da outra senhora). Para isso, proporá aos parceiros europeus a renegociação do pacto intergovernamental saído do Conselho Europeu do passado 9 de Dezembro (o tal do “compacto fiscal”), para lhe acrescentar a dimensão que lhe falta: a coordenação das políticas económicas; os projectos industriais; o relançamento das grandes obras no domínio da energia; a coordenação contra a especulação; um fundo europeu com capacidade para agir nos mercados; um BCE que meta as mãos na massa da forma mais eficaz e sem estar constrangida por algumas das regras actuais; o lançamento de euro-obrigações para mutualizar uma parte das dívidas soberanas; uma nova política comercial da Europa no mundo, que combata a concorrência desleal através de cláusulas de reciprocidade e de regras estritas em matéria social e ambiental.
Mantendo um pé no sonho francês em termos de liderança da Europa, não esquece o eixo “central”, sem o qual tudo se torna mais difícil, propondo para o início de 2013 um novo tratado de amizade franco-alemão, meio século depois do tratado firmado por De Gaulle e Adenauer.
Claro que Hollande quer fazer um contraponto ao presidente-candidato em exercício, mas nunca o citou. Claro que Hollande quer representar a esquerda, mas a esquerda fora do PS não anda muito satisfeita por Hollande não se mostrar muito disponível para negociar com ela. Claro que Hollande quer ser um candidato galvanizador, mas não está muito no seu tom chegar onde tem de chegar pela via do carisma. Mas esta é a política de hoje: temos de contar com gente normal, assumidamente normal, e deixar de esperar por monstros sagrados. Em tese, isso até seria bom: uma cidade de gente normal, com dirigentes normais, sem expectativas “religiosas” acerca dos líderes. Mas não é fácil todos os dias aceitar essa normalidade, pois não?


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24.1.12

o mais pobre dos cavaquistas.


Se Cavaco Silva é "o melhor garante da liberdade possível da comunidade política portuguesa", estamos bem tramados.

Mas não, não é ele o melhor garante, nem da liberdade, nem da soberania. O actual PR diz coisas, mas nunca age em conformidade. Abre a boca sempre fora de tempo, para poder encolher a mão quando chega a hora das decisões. Aliás, a hipocrisia é o traço mais permanente do percurso político de Cavaco Silva. Eu também não vou a Belém atirar moedas a Cavaco, porque não é a minha chávena de chá - e não vou dar moedas a pessoa tão gastadora, que não sabe controlar as suas despesas. Mas Cavaco é perigoso, porque pensa sempre primeiro na pele dele, e só depois no país. Felizmente, já pensa menos nos amigos, porque está zangado de ser o mais pobre de todos os que se acolitaram à sombra do cavaquismo e isso mói-lhe a cabeça. Mas está cada vez mais reduzido aos seus pequenos pensamentos (e isso explica que exponha a um país sofrido da crise as suas angústias orçamentais caseiras) e às suas tácticas de sobrevivência política (por isso dispara em todas as direcções, consoante a hora).
Não, Cavaco já não é garante de nada. Só a cidadania pode ser garante de alguma coisa. Embora concorde que não vale a pena urrar contra o homem, sem urrar contra os que repetidamente se deixaram enganar por ele, dentro e fora do seu próprio partido.

Já ouviram falar de Mariano Gago?


Cinco portugueses distinguidos nos EUA para serem "futuros líderes científicos".

Segundo o Público, «Portugal ficou em segundo lugar, ao lado de Espanha, no número de vencedores. Em primeiro lugar ficou a China, que teve sete premiados. Entre as outras nações elegíveis estavam a Índia, o Brasil, a Itália, a Rússia, a Turquia e a Coreia do Sul.» Além disso, Pedro Carvalho, português, ganhou o prémio fora do território nacional, em Espanha.

Petição "TODOS PELA LIBERDADE".

13:10

censura.


RDP acaba com espaço de opinião que serviu de palco a críticas duras a Angola.

Ainda dizem que a blogosfera não manda nada. Quando um ministro das propagandas acolhe a assessoria de um bloguer da esquerda da esquerda dura, deixamos de ter censura e passamos a ter censura ao quadrado. Não me perguntem como funcionou a cadeia de comando. O fenómeno é de outra natureza: é o efeito de rodar o botão do descaramento para o máximo. O ministro Relvas e a revolucionária República Popular de Angola convergem. Compreende-se: Angola não pode gastar o seu dinheiro a comprar rádios em Portugal; alguém tem de fazer esse controlo, para eles poderem investir em negócios mais rentáveis, tipo indústria das notas de banco.
Viva a amizade entre os povos !


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o princípio utilizador-pagador.


Numa versão pouco habitual. Um outro rationale para um certo "não pagamos".
A coisa explicada pelo Pedro Lains: O "novas oportunidades".

23.1.12

ai, estes espanhóis hesitantes...


Espanha desiste da privatização dos aeroportos de Madrid e Barcelona.
«O anúncio foi feito aos jornalistas pela ministra do Fomento, Ana Pastor, que justificou a medida com a actual crise económica, que provocou uma desvalorização dos activos da gestora aeroportuária espanhola.»

Nós, por cá, somos muito mais afoitos. Uma agenda "liberal", que seja verdadeiramente ideológica, não liga nenhuma à realidade. O que interessa é privatizar, privatizar, privatizar. E depressa, porque "isto" pode não durar muito e é preciso deixar o trabalho feito. Claro, os espanhóis, esses socialistas, é que não percebem isto. Desculpe?! O governo espanhol já não é socialista ?!


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lenda da justiça de Fafe.


Sou absolutamente contra a "justiça popular". Seja do tipo "milícias minhotas", seja do tipo "piratas da internet". Mas há qualquer coisa nesta história da "justiça de Fafe" que dá que pensar.
Passo a citar:
A lenda da Justiça de Fafe é uma apologia da justiça popular. Um dos maiores símbolos referenciais de Fafe, é vista como o espírito e o verdadeiro ex-libris desta localidade, e foi celebrada por um monumento na cidade.
A versão mais difundida desde o início do século XIX foi objecto de um longo poema de Inocêncio Carneiro de Sá, o Barão de Espalha Brasas. Narra um episódio, registado no século XVIII e protagonizado pelo Visconde de Moreira de Rei, político influente no concelho e homem de bem mas não de levar afrontos para casa.
Deputado às Cortes, terá chegado atrasado a uma sessão daquele órgão monárquico, no que terá sido censurado grosseiramente por um marquês, também deputado, que chegou ao desplante de lhe chamar "cão tinhoso". O visconde fingiu não ouvir o impropério e mostrou-se tranquilo durante a sessão mas, finda aquela, interpelou o marquês petulante, repreendendo-o pelas palavras descorteses que lhe havia dirigido. Em vez de lhe pedir desculpa, este arremessou-lhe provocadoramente as luvas no rosto, convocando-o para um duelo.
Ao ofendido competia escolher as armas, e quando todos pensavam que iria preferir espadas ou pistolas, como era usual na altura, o visconde apresentou-se para o recontro munido de dois resistentes varapaus. O marquês não sabia manejar esta arma grosseira mas o visconde, perito na arte do jogo do pau, tradicional nesta região, espancou o seu opositor. À gargalhada perante o acontecimento, os populares que presenciavam não se contiveram e gritaram: "Viva a Justiça de Fafe!".
O Monumento à Justiça de Fafe, evocativo desta tradição e da autoria de Eduardo Tavares, foi inaugurado em 23 de Agosto de 1981 na rua João XXIII desta cidade. Consiste em um estátua com a particularidade de representar um homem a bater noutro com um pão (e não uma vara) e foi colocada nas traseiras do tribunal de Fafe, insinuando que quando a justiça oficial não funciona, a mão popular apresenta-se.

O que há de interessante neste relato, que não sei até que ponto é fidedigno, é a ideia de sabermos escolher as armas. Se jogamos sempre com as armas dos outros, o habitual, as mesmas ideias e os mesmos gestos, estamos logo apanhados no mesmo jogo. Como fazemos para ir mais além - e melhor?

religião e política.


De tempos a tempos volto ao tema da religião, porque o considero importante. Basta ver quantas pessoas neste mundo se consideram religiosas, de forma mais ou menos sistemática (ligada a uma organização, ou igreja), para perceber a importância do fenómeno. Considerar que todos os crentes são, apenas por o serem, inteligentes ou estúpidos, bondosos ou malvados, empenhados ou desinteressados, é um simplismo que falha a necessária compreensão do mundo. Na verdade, nunca me dei verdadeiramente ao trabalho de explicar porque, não sendo religioso (sou agnóstico), me irrito facilmente com extremismos anti-religiosos, mais ou menos tanto quanto me irrito com os mais papistas que o Papa que pululam por aí. Ainda por cima, há muito quem ache que um certo anti-clericalismo é diploma de "boa esquerda" - e há poucas coisas que me façam tanta urticária como os diplomados em "boa esquerda". Ainda um dia hei-de dar-me ao trabalho de explicar devagarzinho o meu pensamento sobre esta coisa da religião no mundo. Por enquanto, esse trabalho de uma teologia laica e descomprometida de um cidadão, que é assim que me coloco, continua adiado sine die.
Entretanto, vou vendo que o assunto interessa a outras pessoas. Deixo aqui esta ligação, para um post intitulado Why the left needs to keep the faith. Não é necessariamente o meu ponto, mas achei que valia a pena partilhá-lo. Porque continuo a pensar que seria útil desbloquear este tema nos sectores de progresso (seja lá isso o que for) na sociedade portuguesa.

22.1.12

livraria.




Porque é que os autores do blogue 31 da Armada, quando, a 10 de Agosto de 2009, subiram à varanda dos Paços do Concelho de Lisboa e hastearam a bandeira azul e branca, não restauraram a monarquia, como disseram ter feito, reclamando que foi precisamente com esse gesto que em 1910 foi proclamada a República?
O que explica que Obama tenha repetido o juramento como presidente, no dia seguinte à cerimónia de tomada de posse assistida por milhões de pessoas, desta feita sem anúncio prévio, num ambiente recatado e perante um restrito número de testemunhas?
O que terá uma câmara municipal feito para ser acusada de colocar falsos polícias na rua?
É mais fácil falsificar notas ou falsificar instituições?
Quando cai um sinal de sentido proibido, por esse facto desaparece a proibição de circular nesse sentido naquela rua?
Este livro, com um título que à primeira impressão soa estranho, “Podemos matar um sinal de trânsito?”, convoca um conjunto de factos da nossa vida colectiva, que passam nos jornais e nas televisões como episódios anedóticos, mas que descobrimos serem muito mais sérios do que parecem, desde que nos demos ao trabalho de os olharmos com olhos de ver.
O subtítulo ajuda a esclarecer o que aqui está em causa: “Um divertimento político-filosófico acerca da profundidade do quotidiano”. Neste livro, tentei que esse trabalho de perceber a profundidade do quotidiano se transformasse num prazer, pela forma desprendida como somos levados a descobrir o que pensávamos estar cansados de saber.
Sem ser um romance, este livro é como um romance: no fundo, conta uma história que queremos saber como acaba. Sem ter a forma de um ensaio, é um ensaio: tem uma tese, mas não a impõe, nem arregimenta os argumentos em ordem clássica, deixando ao leitor o trabalho, que aqui é um gosto, de descobrir o seu próprio caminho marítimo para a Índia. É um divertimento, porque divertirá o leitor tanto ou mais do que divertiu o autor, mas é filosofia por ser pensamento estruturado para lá das fronteiras das disciplinas, e é política por questionar dinâmicas profundas da nossa vida colectiva.

Editado pela Esfera do Caos. Nas livrarias a partir de 23 de Janeiro.


21.1.12

representação política.

19:35





Cerca de 1500 pessoas percorreram neste sábado as ruas do Marquês de Pombal até ao Parlamento, em Lisboa. Os protestos são contra as medidas de austeridade.

Pode ser que a representação política que se vê no Parlamento não esteja nos seus melhores dias. Mas os herdeiros dos controleiros da rua, eternos candidatos a representantes auto-designados, tarde ou cedo enredam-se nos seus rodriguinhos e ficam expostos à sua irrelevância. Perceberão eles que a oposição ao troiko-passismo não equivale a apoiar as efabulações vanguardistas de um punhado de gente?

Cadernos da Rússia. Cadernos da Ucrânia.


Já sabem os visitantes desta casa que aprecio Banda Desenhada, embora não possa dedicar-lhe tanto tempo como gostaria. (Na verdade, cada vez demoro mais tempo a ler um bom álbum de BD - e não ponho os olhos em cima de maus exemplares. É que cada vez é maior a consciência da complexidade do olhar, tendo de deter-me para não avançar demasiado depressa, na voracidade pela história, que me faria perder enorme parte de tudo o que o teatro desenhado tem para ser visto.) É assim que volto, de quando em vez, com umas anotações de uso comum.

Desta vez, venho com Igort, cujo verdadeiro nome civil é Igor Tuveri, um desenhador italiano, educado na cultura russa e que agora vive em Paris. Mencionarei duas das suas obras onde ilumina a história profunda da União Soviética e da Rússia actual como duas realidades políticas onde muito é diferente para muito não ter mudado tanto assim (com as minhas desculpas pelo tom à la Il Gattopardo). Dois álbuns ligados, um já do ano passado, outro acabado de sair.

Em «Les Cahiers Ukrainiens. Mémoires du temps de l'URSS» (Futuropolis, saído em 2010, edição corrigida em 2011) , Igort conta a história da grande fome de 1932-1933, chamada Holodomor, que para alguns se tratou realmente de um genocídio. Para isso, Igort usa duas fontes bem diferentes. Por um lado, testemunhos pessoais. Por outro lado, os arquivos de época da polícia política. Obtém, deste modo, uma mistura de estilos que alguns dizem poder chamar-se "uma comédia" (à italiana).


Em «Les Cahiers Russes. La guerre oubliée du Caucase» (Futuropolis, 2012), Igort segue os passos da jornalista Anna Politkovskaïa e a questão tchetchena para nos mostrar como funciona a "democracia" russa.



Para fazerem uma primeira apreciação gráfica, ficam de seguida mais alguma pranchas destes álbuns.


«Les Cahiers Ukrainiens. Mémoires du temps de l'URSS»







«Les Cahiers Russes. La guerre oubliée du Caucase»









as minorias vanguardistas nem suspeitam que somos tantos.





Seremos capazes de pensar colectivamente sem estarmos sempre a ser embarretados pelas "estratégias de comunicação" e seus idiotas úteis?

tragycomedyaorgya.



Ontem, sexta-feira, no Teatro São Luiz, em Lisboa. Vou escrever já, porque já uma vez me disseram que eu só dava conselhos para ir a coisas que já tinham passado. E desta vez não quero ser responsável se os meus leitores perderem este espectáculo.

Seis horas e quinze minutos de espectáculo, incluindo dois intervalos pequenos (tão pequenos que em nenhum dos dois consegui ser atendido no bar).

As Bacantes, a partir de Eurípedes, pelo Teatro Oficina (de São Paulo). Quem não sabe do texto de Eurípedes, lamento mas a esta hora não dá para contar. Mas procure na internet, se não tem tempo para comprar um livro. Quanto a este espectáculo, deixo apenas a sinopse curta: «Bacantes, de Eurípides, tragédia do embate entre a explosão dos sentidos e as razões de Estado, território de manipulação do desejo em nome da vingança, regressa-nos em forma de ópera carnavalesca, animada por mais de trinta actores, cantores e músicos, divindades afro-brasileiras, música pop e comentário político. Regressa e sobrevive – é já uma criação de 1995 – porque é um espectáculo sempre à procura da distância exacta entre Tebas e o Brasil contemporâneo.»

É um espectáculo total, que virou o São Luiz de pernas para o ar (o palco estendeu-se para todo o espaço da plateia, há actores e acção também por todos os balcões). É teatro, dança, música. É Grécia a sério, dionisíaco a sério. É realmente para maiores de 18 anos. Pode ficar na bancada (zona de participação) ou num balcão, mais recatado, mas não receie: será incentivado a participar, mas não pressionado. Suponho que o "touro" do público que foi integralmente desnudado (como aconteceu a Caetano Veloso, na primeira série), tenha sido conversado sobre essa possibilidade antes de terem passado ao acto. Não é um teatro para quem tenha macaquinhos na cabeça, mas não é pornográfico. Mas se acha que é pornográfico tudo o que tenha gente desnuda, é melhor não aparecer. É o objecto mais resolutamente não burguês que alguma vez vi - e não é por causa da sua retórica anti-capitalista encaixada na tragédia grega. É por causa da forma como lida com o sagrado (se se sente ofendido por mencionarem a sua religião de forma heterodoxa, é melhor não ir). A encenação atira para o longo, como já disse, mas o clímax do crime das bacantes enbriagadas é muitíssimo bem preparado. No total, é uma Grécia brasileira que ficará na memória. Fez-me lembrar a Natália Correia e as suas noções sobre um sagrado primordial e fora das nossas religiões: acho que ela perceberia este teatro.

Informação sobre As Bacantes no S. Luiz, pela companhia Teatro Oficina, aqui.

O primeiro de uma série de vídeos sobre o Teatro Oficina, aqui.

Fica só este sábado e este domingo. É permitido fotografar e filmar. O espectáculo é transmitido ao vivo no site da companhia. Os espectadores só o podem ser se aceitarem essas condições.

Aventurem-se. É um espectáculo único.

20.1.12

Cavaco II, o mendigo.

17:39

Cavaco diz que as reformas dele não chegarão para pagar despesas
.

Vale a pena citar longamente o Público:
No turbilhão de perguntas que os jornalistas lhe colocaram, a que criou maior embaraço a Cavaco foi a que teve a ver com o facto de o chefe de Estado receber subsídio de férias e de Natal, como reformado do Banco de Portugal. O Presidente da República olhou o jornalista durante alguns instantes e depois de fazer uma prolongada pausa disse: “Vou responder”.
E respondeu, afirmando que os 1300 euros que vai receber por mês da Caixa Geral de Aposentações, para onde descontou durante quase 40 anos, e do fundo de pensões do Banco de Portugal para onde descontou durante quase 30 anos, “quase de certeza que não vão dar “ – sublinhou – para pagar “as minhas despesas.”
“Neste momento já sei quanto é que irei receber da Caixa Geral de Aposentações, descontei quase 40 anos uma parte do meu salários para a CGA como professor universitário e também descontei durante alguns anos como investigador da Fundação Calouste Gulbenkian e devo receber 1300 por mês, não sei se ouviu bem 1300 euros por mês”, disse Cavaco, olhando o jornalista. “Tudo somado o que irei receber do fundo de pensões do Banco de Portugal e da Caixa Geral de Aposentações quase de certeza que não dá para pagar as minhas despesas”, afirmou.

Das duas, uma. Ou Aníbal Cavaco Silva tem um qualquer problema de saúde que o incapacita para exercer o cargo de PR - e, nesse caso, não o critico, deixo-lhe a minha solidariedade e peço-lhe que renuncie e vá tratar-se. E desejo-lhe pronta e total recuperação. Ou Cavaco é um político que, consciente do que está a dizer, e de quando o está a dizer, manifesta um total desconhecimento, incompreensão e insensibilidade face ao que se passa no país e com a maioria dos cidadãos. Nesse caso, merece que se organize um buzinão nacional que mostre ao PR que o país não suporta o seu umbigo, não atura que ele se queixe publicamente de uma situação pessoal que é infinitamente melhor do que a de muitos dos seus concidadãos. É que não se suporta um PR que fala pela sua vidinha pessoal, quando se candidatou e foi eleito para pensar no país e não nas suas contas. A pornografia já chegou longe demais.

o PS.

14:15

O Partido Socialista faz falta ao país. Para servir na função que lhe cabe tem de fazer qualquer coisa para mudar o seu actual desempenho na política portuguesa. Já aqui o escrevi longamente, várias vezes: não se fez, de forma séria e pública, o balanço da fase anterior, dita socrática. Essa falta causou dois erros graves. Da parte da direcção, uma tentativa de fazer de conta que o mundo tinha começado com a chegada de AJS à liderança, deixando passar em claro, e facilitando, a manobra do PSD para atirar as culpas todas para o anterior PM. Da parte dos mais fervorosos apoiantes do anterior governo, uma exploração sistemática das dificuldades de dirigir um partido de oposição responsável nas actuais circunstâncias, como se essa dificuldade fosse só de Seguro e não fosse da generalidade dos partidos socialistas, social-democratas e trabalhistas por esse Europa fora. Estes dois erros reforçam-se mutuamente, como erros, e fazem com que os socialistas pareçam andar às aranhas.
Não tenho lições a dar ao PS, como é evidente. Mas gostava mais de ver os socialistas a discutir como poderia o país fazer melhor pelo crescimento e o emprego, que é afinal isso que o país espera de tão boa gente.
(E, claro, vou continuar a escrever o que penso, apesar de, manifestamente, haver por aí quem julgue que um cidadão que escreve num blogue tem obrigação de seguir as conveniências deste ou daquele partido, ou mesmo deste ou daquele partido.)


19.1.12

se podemos ter pleno emprego para matar alemães, por que não podemos ter pleno emprego construindo hospitais e escolas, contratando enfermeiras e professores?

16:45

O seguinte vídeo merece um visionamento - e a consequente reflexão. Trata-se de um excerto do filme de Michael Moore, Sicko. Uma parte do vídeo é claramente virada para o público conservador americano, que pensa que servir no Serviço Nacional de Saúde é algo como ser funcionário da União Soviética. Mas, em geral, as questões suscitadas são questões fundamentais, que devemos ter sempre presentes em debates públicos intoxicados por perspectivas de curto prazo.




Adenda: Como é que se sabe quando um blogue não tem amigos? Quanto tem um erro no título de um post e durante meio dia ninguém protesta! (Já corrigi.)

há conselhos gratuitos?

14:15

O 31 da Armada aconselha António José Seguro, secretário-geral do PS, a "contra-atacar". Contra o governo, a crise, a troika, um ministro das finanças que se esquece que é preciso pagar as pensões dos bancários?
Não, nem pensar.
O 31 da Armada aconselha o secretário-geral do PS a contra-atacar sectores de opinião interna dentro do PS, os chamados socráticos.
O que terá convencido o 31 da Armada de que a prioridade de António José Seguro possa ser atacar uma parte da opinião interna do seu próprio partido?

neste dia em 1923 nasceu Eugénio de Andrade.

11:30

O DESEJO

O desejo, o aéreo e luminoso
e magoado desejo latia ainda;
não sei bem em que lugar
do corpo em declínio mas latia;
bastava abrir os olhos para ouvir
o nasalado ardor da sua voz:
era a manhã trepando às dunas,
era o céu de cal onde o sul começa,
era por fim o mar à porta - o mar,
o mar, pois só o mar cantava assim.

Eugénio de Andrade, O Outro Nome da Terra

18.1.12

trabalho e capital.


Já escrevi o que tinha a dizer sobre o "acordo" de "concertação" "social".
Daniel Bessa, um convertido às soluções post-it (tipo "basta colar nas trombas dos de baixo e já está"), não podia ser mais claro: a meia hora adicional por dia de trabalho era uma brincadeira de meninos, comparado com aquilo que afinal acabou por ser assinado. Se ele o diz, quem somos nós para desmentir?

Stop SOPA !

14:15



Não sou aderente da iniciativa, mas convém que nos informemos. O vídeo que se segue é uma saudável introdução ao problema.




esquerdas.


A propósito deste post: Não, obrigado, não quero recibo, Filipe Moura publica este outro post: O "Cinco Dias" já tem o seu Soares dos Santos.
Vale a pena ler ambos. Ajuda a compreender que, hoje em dia, a reivindicação de se "ser de esquerda" pode ser um embuste. Como escreve Filipe Moura: «Depois de ter exportado um dos seus fundadores para o gabinete de Miguel Relvas, o Cinco Dias tem agora alguém que comunga as ideias sobre fiscalidade da direita mais liberal.»
É, também, isto a nossa crise: o oportunismo e a demagogia tomaram conta também de franjas largas da auto-reivindicada esquerda. A solução não é dizer que já não há diferença entre esquerda e direita, porque isso não é verdade e é uma fuga aos verdadeiros debates (o que fazer de novo, em circunstâncias novas, para preservar valores antigos que permanecem válidos). A solução é não passarmos carta de alforria a grupos, blogues e excitações - só porque berram muito, radicalizam muito, estrebucham muito.

algo de novo no reino da dinamarca?

11:55

A primeira-ministra da Dinamarca apresentou esta manhã no Parlamento Europeu o programa da presidência do Conselho da União Europeia, que neste semestre será da responsabilidade do seu governo. Dado que quase toda a Europa é governada pela direita, mais conservadora ou mais liberal, e que isso influencia enormemente a resposta à crise, estamos curiosos por saber o que pode fazer, ou, pelo menos, dizer de diferente um governo de centro-esquerda.
As oposições socialistas, trabalhistas e social-democratas na Europa, não apenas em Portugal, têm tido extrema dificuldade em convencer os povos de que seriam capazes de responder de forma substancialmente diferente a esta crise, e que essa resposta seria mais eficaz e mais simpática para o quotidiano das pessoas. Se a Dinamarca, liderada pela social-democrata Helle Thorning Schmidt, desse uma luz dessa alternativa, a nível europeu, durante estes seis meses, isso representaria um grande incentivo à reflexão sobre caminhos socialmente responsáveis que não seguissem a actual linha de empobrecimento forçado embrulhado em ideologia.
Do que disse a senhora Helle Thorning Schmidt, apesar da opacidade relativa do palavreado diplomático de uso nestas circunstâncias, cabe realçar o seguinte: o processo de consolidação orçamental não pode ser abandonado, e é importante, pelo que é preciso completar rapidamente o tratado do "compacto fiscal"; mais isso não chega, é preciso crescimento e emprego, e a Europa tem de agir nesse sentido; o reforço do Mercado Interno, fazendo o que ficou para trás, deve contribuir para uma resposta europeia de crescimento e emprego; isso tem de ser feito com o método comunitário, porque já não estamos em tempos de a Europa ser governada pelos que têm a força, estamos em tempos de governo segundo a lei e em democracia.
Tudo isto são boas intenções - e, além disso, um programa que, concretizado, tocaria em alguns aspectos essenciais do que está em causa. Resta saber se isto é apenas a ponta do icebergue, e a Dinamarca tem ideias concretas para colocar em cima da mesa, ou se isto é apenas um floreado necessário a uma audiência no exigente Parlamento Europeu, sem força e sem aliados suficientes para agitar as águas profundas.
O desvelar dessas potencialidades nos próximos seis meses terá de ser seguido com atenção.

Europa: Informação e reflexão, diversificada nas fontes  e nas ópticas, actual e actualizada.
Sobre a Europa. Clicar na bandeira para aceder.

desconcertação social a longo prazo.

10:21


Fundador da UGT diz que acordo pode ser “certidão de óbito” desta central sindical.

Triste acordo de concertação. Triste desconcertação. Triste por tudo, pela forma e pelo conteúdo.

A CGTP não entra no acordo - mas, também, nunca entra. Em vez de ser uma variável, é uma constante. Isso acaba por reduzir o significado da sua recusa, por muita razão que tenha. E muita razão tem. A relevância da CGTP continua a ser a rua. Sim, a rua importa, mas não é possível uma democracia madura sem que os trabalhadores tenham uma voz à mesa das instituições - e a saída fácil da CGTP, fugindo sempre com o rabo à seringa dos acordos, deixa essa necessidade democrática enfraquecida. E debilita a sua voz própria em circunstâncias como esta, por muito grosso que Carvalho da Silva fale. A incapacidade de Carvalho da Silva para dar resposta a essa visão alargada do papel dos trabalhadores numa democracia é um factor negativo para o seu futuro político pós-CGTP, ele que já chegou a sonhar com uma candidatura presidencial e que, quando passar a pasta de líder sindical, certamente não se deixará ficar fechado entre as quatro paredes de um centro de investigação académica.

A UGT assina, porque, explica, todas as maldades seriam feitas de qualquer maneira, porque as maldades estão previstas no acordo com a troika assinado por PS, PSD e CDS. Mas esse acordo já não existe! Já foi revisto por este governo, sem dar cavaco a ninguém (talvez a Cavaco, não sei), já foi ultrapassado pelos acontecimentos - menos para a UGT, que continua a invocar tal coisa. A UGT assina, porque, explica, ainda podia ser pior: por exemplo, podia vir a meia hora a mais. Mas, então, podia sempre ser pior - logo, devem assinar-se todos os acordos. Não faz sentido: a UGT assina um acordo que não tem nada a favor dos trabalhadores. As confederações patronais, desta vez, nem disfarçam: queriam mais, mas tudo o que assinaram é a seu gosto. E, pior: se calhar terão ainda mais, por via legislativa.

No conteúdo, este acordo, pela primeira vez desde há anos, só estende a mão aos patrões, não tem nada para compensar o esforço dos trabalhadores. É um acordo preguiçoso, porque nada exige às empresas. A grande culpada da falta de competitividade da economia portuguesa, bem como da baixa produtividade da maior parte das empresas, é a deficiente preparação de muitos empresários e de muitos dirigentes das empresas. Fazer bem é necessário, mas fazer bem sem desperdiçar recursos e sem explorar as pessoas é mais exigente. Essa eficiência continua a faltar, parecendo que ninguém está interessado em exigir às empresas que façam melhor por esse lado. A culpa é sempre dos trabalhadores, mas nunca fica escrito como é que os trabalhadores saem beneficiados se as coisas correrem melhor: toda a gente tem de "se unir" para pagar a crise, mas, quando chegarem melhores dias, como serão distribuídas as vantagens? Este acordo, fugindo descaradamente a esta questão, é um acordo anti-social.

E isto digo eu, que sou um reformista apoiante fervoroso de uma concertação social forte. Mas, para isso, se calhar temos de perguntar aos alemães como se faz...

13.1.12

dicionário de politiquês.


Dicionário de política na América: depois da primeira parte (sobre o Partido Republicano), a segunda parte é sobre alguma expressões que são portadoras de significados muito diferentes consoante são usadas por uma ou outra das principais correntes políticas lá do sítio. Por exemplo, o que quer dizer "Europa"?
Europe - Dem heaven. An ability to balance the love of good cuisine with the love for a well-constructed government bureaucracy. Topless beaches. The fact that the eurocrisis probably will have more to do with whether Obama wins reelection than anything he or anyone in the U.S. might do compromises this love affair somewhat.

Mais aqui: Dictionary of American Politics, Part Two - Demspeak.

forma ou conteúdo.

14:45

12.1.12

história portuguesa, tradições alemãs.


Segue-se uma longa citação de um texto de 1939.

***

Foi o grande historiador alemão Alexander von Humboldt, que, há um século, proclamou a ignorância dos navegadores portugueses da época dos descobrimentos nestes termos bastante depreciativos: "Não é a multidão guerreira e pouco civilizada dos conquistadores que devemos honrar pelos avanços científicos que, sem dúvida, têm o seu princípio na descoberta do novo continente."
Ao mesmo tempo que ele avançava a tese da ignorância dos conquistadores (alusão directa aos navegadores Portugueses), Humboldt apresentou os seus dois compatriotas Martin Behaim e Regiomontanus como os fundadores da arte de navegar na época das descobertas. Em sua opinião, Martin Behaim, o "homem extraordinário", "cosmógrafo de grande renome" tinha recebido do rei de Portugal, D. João II, a ordem de calcular uma tabela das declinações do Sol e de ensinar aos pilotos a guiarem-se pelas alturas do Sol e das estrelas. E ele sustentava que "Regiomontanus publicara em Nuremberga as suas famosas Efemérides Astronómicas... que serviram nas costas da África, da América e da Índia, nas primeiras viagens de descoberta de Bartolomeu Dias, de Colombo, Vespúcio e Gama".
Desde então Colombo começou a figurar na história como o verdadeiro iniciador dos empreendimentos marítimos do seu século.
Foi assim que nasceu, com toda a aparência de uma verdade comprovada, a lenda da origem alemã da ciência náutica portuguesa na época dos descobrimentos, com a exclusão total da obra do Infante D. Henrique o navegador e do Rei D. João II.
A propaganda a favor de Behaim continuou na obra de Ghillany, Geschichte des Seefahrers Bitter Martin Behaim, publicada em 1853 sob o patrocínio e com a colaboração de Humboldt, para "lembrar à memória do mundo o papel da ciência alemã que, no fim da Idade Média, permitiu aos célebres navegadores percorrer e penetrar corajosamente no Oceano, graças à ajuda prestada pela ciência de Regiomontanus e Behaim."
A história desta campanha, iniciada por Humboldt e continuada pelos seus discípulos, a favor de Behaim, de Regiomontanus e da origem alemã da ciência náutica portuguesa, é rastreada nos dois volumes de Les légendes Allemandes sur l'Histoire des Découvertes Maritimes Portugaises [Lendas alemãs sobre a história das descobertas marítimas portuguesas], de Joaquim Bensaude.
Já em 1899, Ravenstein, estudando cuidadosamente todos os documentos utilizáveis, conscientemente concluiu que "o objetivo principal, senão único, da viagem de Behaim a Portugal foi de natureza comercial" e que ele "não exerceu qualquer influência sobre a origem ou os progressos da arte da navegação na época das descobertas."
Ravenstein liquidou assim a tese de Humboldt sobre o suposto envolvimento de Behaim como auxiliar dos empreendimentos empresas marítimos de D. João II.
Em 1912 foi publicado em Portugal o notável trabalho de Joaquim Bensaude sobre L'astronomie nautique au Portugal à l'époque des grandes découvertes [A Astronomia Náutica em Portugal na época das grandes descobertas] e, no ano seguinte, A Astronomia dos Lusíadas, do professor de mecânica celeste na Universidade de Coimbra, Luciano Pereira da Silva, que vieram revolucionar a concepção corrente da história e dos progressos da ciência náutica das descobertas marítimas dos séculos XV e XVI, ao mesmo tempo que denunciavam os erros e equívocos prevalentes por esse mundo fora, após a publicação do Exame crítico e, mais tarde, do Cosmos, de Humboldt.
Desde então, estes dois cientistas publicaram uma notável série de novos trabalhos que abriram horizontes mais amplos para a investigação histórica.
A descoberta do Regulamento do Astrolábio da Biblioteca de Munique, o mais antigo manual náutico conhecido, que contém as regras para o cálculo da latitude geográfica para uso dos navegadores portugueses, derramou uma viva luz sobre o problema da origem e dos progressos da ciência náutica das descobertas e, graças a este feliz achado, conhecemos hoje como nasceu, e sobretudo como evoluiu e progrediu, toda a ciência náutica, desde a segunda metade do século XV.
Este é o primeiro resultado desses estudos, levados a bom termo após investigações persistentes, realizadas entre grandes dificuldades, porque os documentos encontrados e agora ao alcance de pesquisadores em edições fac-símile, estavam então esquecidos e quase ignorados no segredo das bibliotecas.
Estes documentos permitem-nos provar que os navegadores portugueses da época dos descobrimentos foram os verdadeiros criadores da ciência náutica que usaram nas suas frequentes viagens e explorações, a partir do primeiro quarto do século XV, quando começaram as descobertas do Infante D. Henrique e ao longo do século XVI.

***

Parágrafos iniciais de António Barbosa, "L'astronomie nautique au Portugal pendant les découvertes", Separata de : Revue d'histoire moderne, T. 14 (nouv. ser. t. 8) n.º 39 (Aout-Sept, 1939).
(Tradução de Porfírio Silva)



11.1.12

Neste dia em 1948 nasceu Al Berto.

16:21

Al Berto, numa gravação áudio feita em Janeiro de 1992, em Coimbra, durante uma sessão de poesia no Centro Cultural Dom Dinis onde participavam também Manuel Fernando Gonçalves, Helder Moura Pereira, António Franco Alexandre e Paulo da Costa Domingos.


Al Berto em Coimbra, numa sessão de poesia com estudantes acéfalos
from Rita Leonor Barqueiro on Vimeo.


Transcrição:

Antes de começar a ler só queria perguntar-vos se vocês não são capazes de estar em silêncio cinco minutos com vocês mesmos para conseguirem estar em silêncio às vezes quando é necessário com os outros, e quem não gosta sai e volta a seguir porque se for um merda - deixem-me acabar, se faz favor - se for um merda com uma guitarra que faz três acordes vocês estão em silêncio porque se curte e é imensamente bom para a carola; a poesia, pá, lamento, boa ou má, talvez não fosse má ideia ouvir. E suponho que há montes de gente aqui nesta sala que nunca abriu um livro de poesia sequer. E é uma questão de respeito pelas outras pessoas e por aquilo que elas fazem. Eu vou dormir mas pagaram-me para estar aqui, inclusivamente, e eu não publico livros para idiotas. Importas-te de servir mais um que é para eu me animar? Eu estou bem, só preciso de um reforço aí no copo. O que eu acabo de dizer não obriga ninguém a gostar daquilo que eu escrevo, inclusivamente. Já começo, se for preciso eu espero. À vossa. Eu estou lindamente; posso começar? Também me posso ir embora, de qualquer maneira não tem importância nenhuma, para mim é-me igual. Não, eu estou lindamente. Eu hoje estou numa de chato também, se não te importas, também tenho o direito. Agora é quando me apetecer também. E como eu não sou a Anabela, não canto, não é, é um problema, ela abre o gasganete, pá… Falta gelo, é horrível isto assim, não leio nada sem gelo, toma. Gelo aí para dentro. Eu já começo, eu vou ler, juro. Nem penses, agora é quando eu quiser. Não, Helder, tu não me conheces! Ouve lá, queres vir comigo? Vais tu primeiro! Agora começo quando me apetecer e se calhar nem sequer leio que é para chatear! Não, eu até me vou embora, não preciso de ler nada, eu; eu não preciso de ler nada. Mas eu não preciso de ler nada! É-me igual, mais do que eu já bebi… costumo tomar o pequeno-almoço às 10 da manhã. Bom, eu vou tentar abstrair-me do som de fundo.

[...]

a contínua escuridão torna-se claridade
iridescência lume
que incendeia o coração daquele cujo ofício
é escrever e olhar o mundo a partir da treva
humildemente
foi este o trabalho que te predestinaram
viver e morrer
nesse simulacro de inferno

meu deus!
tinha de escolher a melhor maneira de arder
até que de mim nada restasse senão um osso
e meia dúzia de sílabas sujas
calcinadas

[...]

estavam os homens as águas os animais e as terras
cansados de luz e de não haver noite
levantei as mãos
fiz rodar a terra para que se retirasse o sol
enrolei os dedos nas últimas fulgurações
teci com os cintilantes fios
a misteriosa linguagem dos astros

depois
fui pela escura abóbada
estendi a fantástica tapeçaria
para que lá em baixo ninguém perdesse o seu caminho
e nela pudesse adivinhar o doloroso humano destino

a noite ficou assim tão habitada quanto a terra
os homens podem hoje sonhar com aquilo que mal entendem
e quando o medo atribuiu um nome àquele luzeiro
dei por terminada a obra
cortei os fios como se cortasse um pedaço de mim
fui para outro hemisfério adormecer o dia
construir a pirâmide o quadrado o círculo a linha recta
as cores do mundo
e dar vida a outras incandescentes criaturas

[E um caralho para quem faz barulho.]


escrevo-te a sentir tudo isto
e num instante de maior lucidez poderia ser o rio
as cabras escondendo o delicado tilintar dos guizos nos sais de prata da fotografia
poderia erguer-me como o castanheiro dos contos sussurrados junto
ao fogo
e deambular trémulo com as aves
ou acompanhar a sulfúrica borboleta revelando-se na saliva dos lábios
poderia imitar aquele pastor
ou confundir-me com o sonho de cidade que a pouco e pouco morde a
sua imobilidade

habito neste país de água por engano


[e de cretinos também]


são-me necessárias imagens radiografias de ossos
rostos desfocados mãos sobre corpos impressos no papel e nos espelhos
repara
nada mais possuo
a não ser este recado que hoje segue manchado de finos bagos de romã
repara
como o coração de papel amareleceu no esquecimento de te amar

[...]

eras novo ainda
mal sabia reconhecer os teus próprios erros
e o uso violento que de noite eu fazia deles
esta cama de minerais acesos
escrevo para despertar a fera de sol pelo corpo
escorrem aves de cuspo para a adolescência da boca
e junto ao mar existe ainda aquele lugar perdido
onde a memória te imobilizou
enumero as casas abandonadas ao sangue dos répteis
surpreendo-te quando me surpreendes
pela janela espio a paisagem destruída
e o coração triste dos pássaros treme
quando escrevo mar
o mar todo entra pela janela
onde debruço a noite do rosto tocado...me despeço

[...]

mais nada se move em cima do papel
nenhum olho de tinta iridescente pressagia
o destino deste corpo

os dedos cintilam no húmus da terra
e eu
indiferente à sonolência da língua
ouço o eco do amor há muito soterrado

encosto a cabeça na luz e tudo esqueço
no interior desta ânfora alucinada

desço com a lentidão ruiva das feras
ao nervo onde a boca procura o sul

[ora aí está, está vazia a sala, não está? Peço imensa desculpa àqueles que estavam a ouvir. ]

desço com a lentidão ruiva das feras
ao nervo onde a boca procura o sul

e os lugares dantes povoados
ah meu amigo
demoraste tanto a voltar dessa viagem

o mar subiu ao degrau das manhãs idosas
inundou o corpo quebrado pela serena desilusão

assim me habituei a morrer sem ti
com uma esferográfica cravada no coração

[Acho que vou saltar. Ainda não cheguei lá.]

Dizem que a paixão o conheceu
mas hoje vive escondido nuns óculos escuros
senta-se no estremecer da noite enumera
o que lhe sobejou do adolescente rosto
turvo pela ligeira náusea da velhice

conhece a solidão de quem permanece acordado
quase sempre estendido ao lado do sono
pressente o suave esvoaçar da idade
ergue-se para o espelho
daquele que lhe devolve um sorriso tamanho do medo

dizem que vive na transparência do sonho

[...]


Vocês são mesmo ordinários, foda-se. Acho que não leio mais nada, não me apetece. Não pensem que me vou embora sem dizer meia dúzia de coisas; eu por acaso lamento imenso que pessoas que têm um nível, penso eu, ou não têm, de facto, é a primeira vez que me acontece, e devo dizer que desde 1985 que leio poemas em público, é a primeira vez que não consigo ler ou que estou a ler com imenso sacrifício porque é perturbante ter um barulho e a falta de respeito pelo trabalho dos outros, é a mesma coisa que eu entrar quando vocês estão a fazer exames e eu digo assim então e agora se fossem apanhar no cu, não é, é giro, é muita giro, é fresco, pá, é porreiro à brava. É mais ou menos a mesma coisa só que eu já não faço exames há vinte anos, sou profissional, no sentido que sou… eu sou escritor há vinte anos, há vinte anos que escrevo, há dez que publico neste país; tenho imensa pena da vossa ignorância, ou da ignorância de alguns. Primeiro, e as outras pessoas que aqui estão também, não estou sozinho, não estou, felizmente não estou sozinho! Porque está aqui o Manuel Fernando, está aqui o Helder Moura Pereira, o António Franco Alexandre, o Paulo da Costa Domingos, se vocês não conhecem são mais ignorantes que aquilo que eu pensava, mas muito mais. O que vocês precisam é de Saramagos, muitos. E mais mal escrito, porque ele até nem escreve muito mal. Lamento imenso, mas eu não vou ler mais nada, porque não é possível. As vaias fazem parte também de uma paixão, do mito. Muito obrigado. E eu só trabalho para o meu mito, mais nada. Agradeço aqueles que também me vaiaram porque estão a contribuir para isso, largamente, nesta cidade, sobretudo onde eu nasci, sobretudo na cidade onde eu nasci, é porreiro, porque é a primeira vez que fui vaiado. E é a primeira vez que não houve respeito por mim nem pelas outras pessoas que aqui estiveram, que estão de boa vontade e sem mais algum interesse. Muito obrigado, adorei o whisky que vim tomar a Coimbra. Não vou voltar tão cedo.

(Grande parte da transcrição foi retirada daqui.)