Em tempos que já lá vão, um quotidiano da nossa praça tinha um lema: "a verdade a que temos direito". Esse jornal, "o diário", já lá vai.
Agora há por aí jornais, parece que com muito sucesso comercial, que vendem todos os dias "a pequena falsificação a que temos direito". Sejam umas falsas partes anatómicas de meninas e senhoras que supostamente vendem (papel), sejam falsas notícias que servem determinados propósitos.
Já o "Público", que vai despedindo e andando, é mais requintado: quer inovar sem jornalistas. E depois falta pau para tanta obra. Nessa saga, novo episódio: prolonga agora a técnica que deveria designar-se como "as duas verdades a que temos direito". Hoje dá uma amostra dessa técnica. Noticiando uma conferência do Instituto de Ciências Sociais, que assinala os 50 anos dessa prestigiada instituição de investigação, e na qual, escreve-se, "a crise económica esteve no centro das atenções", o Público titula na primeira página, entre aspas para mostrar que foram os cientistas sociais a dizer: "Não devemos temer grupos radicais mas quem fica em casa". Ficamos a pensar que algum cientista social decidiu desancar os pacatos cidadãos que não se radicalizam nas ruas, mas apenas no remanso do lar. Depois, vamos à página 12, onde a notícia se desenvolve, e o título já é outro, ainda entre aspas: "Não devemos temer grupos radicais mas o cidadão normal que fica sem casa".
Vai alguma distância entre o cidadão que fica em casa e o cidadão, ainda normal, que fica sem casa. Até por ser mais difícil ficar em casa depois de se ficar sem casa.
E assim o Público me serviu duas verdades a que tenho direito, pelo preço de uma só. Entre casa e o trabalho, no percurso de autocarro, tendo lido apenas o título de primeira página, reflecti sobre o perigo das pessoas que ficam em casa, contraposto ao perigo dos radicais, que seria uma teoria de algum cientista social em tempo de crise. Até já me sentia na obrigação de escrever um post sobre a coisa. Chegado aqui à "casa" que me abriga para trabalhar, ao café da manhã, li o miolo do jornal, arquivei a reflexão anterior, e dediquei-me a um novo problema: o potencial revoltoso das pessoas que ficam sem casa. Aqui, as minhas reflexões tornaram-se bastante mais do senso comum. E do comum e banal dos nossos tristes dias.