Como já é sabido que, em termos políticos, quanto à visita de Merkel hoje a Portugal estou na toca, deixo, para não perder de vista os meus amigos que andam a expressar a sua zanga com a Alemanha, uma matéria lateral aos dias de hoje, mas sem dúvida com alguma ligação. Segue-se uma longa citação de um texto de 1939.
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Foi o grande historiador alemão Alexander von Humboldt, que, há um século, proclamou a ignorância dos navegadores portugueses da época dos descobrimentos nestes termos bastante depreciativos: "Não é a multidão guerreira e pouco civilizada dos conquistadores que devemos honrar pelos avanços científicos que, sem dúvida, têm o seu princípio na descoberta do novo continente."
Ao mesmo tempo que ele avançava a tese da ignorância dos conquistadores (alusão directa aos navegadores Portugueses), Humboldt apresentou os seus dois compatriotas Martin Behaim e Regiomontanus como os fundadores da arte de navegar na época das descobertas. Em sua opinião, Martin Behaim, o "homem extraordinário", "cosmógrafo de grande renome" tinha recebido do rei de Portugal, D. João II, a ordem de calcular uma tabela das declinações do Sol e de ensinar aos pilotos a guiarem-se pelas alturas do Sol e das estrelas. E ele sustentava que "Regiomontanus publicara em Nuremberga as suas famosas Efemérides Astronómicas... que serviram nas costas da África, da América e da Índia, nas primeiras viagens de descoberta de Bartolomeu Dias, de Colombo, Vespúcio e Gama".
Desde então Colombo começou a figurar na história como o verdadeiro iniciador dos empreendimentos marítimos do seu século.
Foi assim que nasceu, com toda a aparência de uma verdade comprovada, a lenda da origem alemã da ciência náutica portuguesa na época dos descobrimentos, com a exclusão total da obra do Infante D. Henrique o navegador e do Rei D. João II.
A propaganda a favor de Behaim continuou na obra de Ghillany, Geschichte des Seefahrers Bitter Martin Behaim, publicada em 1853 sob o patrocínio e com a colaboração de Humboldt, para "lembrar à memória do mundo o papel da ciência alemã que, no fim da Idade Média, permitiu aos célebres navegadores percorrer e penetrar corajosamente no Oceano, graças à ajuda prestada pela ciência de Regiomontanus e Behaim."
A história desta campanha, iniciada por Humboldt e continuada pelos seus discípulos, a favor de Behaim, de Regiomontanus e da origem alemã da ciência náutica portuguesa, é rastreada nos dois volumes de Les légendes Allemandes sur l'Histoire des Découvertes Maritimes Portugaises [Lendas alemãs sobre a história das descobertas marítimas portuguesas], de Joaquim Bensaude.
Já em 1899, Ravenstein, estudando cuidadosamente todos os documentos utilizáveis, conscientemente concluiu que "o objetivo principal, senão único, da viagem de Behaim a Portugal foi de natureza comercial" e que ele "não exerceu qualquer influência sobre a origem ou os progressos da arte da navegação na época das descobertas."
Ravenstein liquidou assim a tese de Humboldt sobre o suposto envolvimento de Behaim como auxiliar dos empreendimentos empresas marítimos de D. João II.
Em 1912 foi publicado em Portugal o notável trabalho de Joaquim Bensaude sobre L'astronomie nautique au Portugal à l'époque des grandes découvertes [A Astronomia Náutica em Portugal na época das grandes descobertas] e, no ano seguinte, A Astronomia dos Lusíadas, do professor de mecânica celeste na Universidade de Coimbra, Luciano Pereira da Silva, que vieram revolucionar a concepção corrente da história e dos progressos da ciência náutica das descobertas marítimas dos séculos XV e XVI, ao mesmo tempo que denunciavam os erros e equívocos prevalentes por esse mundo fora, após a publicação do Exame crítico e, mais tarde, do Cosmos, de Humboldt.
Desde então, estes dois cientistas publicaram uma notável série de novos trabalhos que abriram horizontes mais amplos para a investigação histórica.
A descoberta do Regulamento do Astrolábio da Biblioteca de Munique, o mais antigo manual náutico conhecido, que contém as regras para o cálculo da latitude geográfica para uso dos navegadores portugueses, derramou uma viva luz sobre o problema da origem e dos progressos da ciência náutica das descobertas e, graças a este feliz achado, conhecemos hoje como nasceu, e sobretudo como evoluiu e progrediu, toda a ciência náutica, desde a segunda metade do século XV.
Este é o primeiro resultado desses estudos, levados a bom termo após investigações persistentes, realizadas entre grandes dificuldades, porque os documentos encontrados e agora ao alcance de pesquisadores em edições fac-símile, estavam então esquecidos e quase ignorados no segredo das bibliotecas.
Estes documentos permitem-nos provar que os navegadores portugueses da época dos descobrimentos foram os verdadeiros criadores da ciência náutica que usaram nas suas frequentes viagens e explorações, a partir do primeiro quarto do século XV, quando começaram as descobertas do Infante D. Henrique e ao longo do século XVI.
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Parágrafos iniciais de António Barbosa, "L'astronomie nautique au Portugal pendant les découvertes", Separata de : Revue d'histoire moderne, T. 14 (nouv. ser. t. 8) n.º 39 (Aout-Sept, 1939).
(Tradução de Porfírio Silva)