19.4.10

Crónica das mortes amnistiadas

(Um texto de Adelina Barradas de Oliveira, Juíza Desembargadora, autora do blogue Ré em Causa Própria, um blogue do Expresso.)



"Assassinado pelo céu,
entre as formas que vão para a serpente
e as formas que buscam o cristal,
deixarei crescer meus cabelos. "
Garcia Lorca

Baltazar Garzón foi ouvido em Tribunal na passada sexta feira – 16/Abril -devido a uma decisão que está longe de não ser polémica, do Juiz Luciano Varela, do ST [Supremo Tribunal], segundo a qual Garzón terá de responder pelas acusações, da organização franquista "Falange" e da organização de extrema-direita "Manos Limpias", relativas à sua decisão de investigar os desaparecidos da Guerra Civil e do franquismo, à revelia da lei de amnistia geral aprovada em 1977, dois anos após a morte de Franco.
Balatazar Garzón tinha começado, em 2008, a investigar execuções e desaparecimentos, atribuídos às forças do general Francisco Franco, e os crimes que ocorreram durante a Guerra Civil (1936-39) e nos anos seguintes, cobertos por uma lei de amnistia geral decretada em 1977.
Ainda em 2008 a ONU tinha pedido ao Estado Espanhol que abolisse ou revogasse esta Lei da Amnistia. Ou seja, ela não foi entendida, como alguns querem fazer crer, como uma pacificação de um Estado numa época conturbada em que a ETA preocupava a Espanha.
Baltazar Garzón não pode ser acusado de revanchismo porque pretende agora (não discuto se mal se bem), investigar o que aconteceu às vitimas da guerra civil espanhola.
Não podemos esquecer que este Juiz, mediático ou não (não é o que está em causa), já é conhecido por ter emitido uma ordem de prisão contra o ex-presidente do Chile, Augusto Pinochet pela morte e tortura de cidadãos espanhóis. Utilizou como base o relatório da Comissão Chilena da Verdade (1990-1991).
Reiteradas vezes manifestou o seu desejo de investigar o ex-secretário de Estado norte-americano Henry Kissinger, pela sua relação com a denominada Operação Condor.
Trabalha também num processo em que são acusados de genocídio diversos militares argentinos pelo desaparecimento de cidadãos espanhóis durante a ditadura argentina (1976-1983).
Em 2001, solicitou permissão ao Conselho da Europa para processar o Primeiro Ministro italiano Silvio Berlusconi, então membro da Assembleia Parlamentar do Conselho.
Em Dezembro desse mesmo ano, investigou, por suspeitas de lavagem de dinheiro, contas no exterior (off-shore) do conglomerado financeiro BBVA (segundo maior banco da Espanha).
Em Janeiro de 2003, criticou enfaticamente o governo dos EUA pela detenção ilegal, na base de Guantánamo (Cuba), de suspeitos de pertencerem ao grupo terrorista Al Qaeda. Nesse mesmo ano, participou em campanhas contra a guerra no Iraque, não dando tréguas contudo ao terrorismo.
Em Espanha, deu seguimento às investigações do caso GAL (Grupos Antiterroristas de Libertação), grupo de extermínio que, conforme ficou comprovado, foi criado durante o primeiro governo do PSOE, ainda nos anos 1980, com a finalidade de assassinar membros e simpatizantes da ETA. Várias autoridades foram condenadas em virtude do caso, inclusive o ex-Ministro do Interior José Barrionuevo. Posteriormente, foram todos indultados no governo de José Maria Aznar.
Actuou também contra os terroristas bascos da ETA. Em 2002, conseguiu suspender o funcionamento, por 3 anos, do partido Batasuna, ao demonstrar as suas relações com o grupo terrorista. Dessa acção resultou também o encerramento dos jornais Egin e Egunkaria, além da rádio Egin Irratia. Angariou com isso o ódio dos nacionalistas bascos, que consideram que atacou a cultura basca e não o terrorismo.
Em Março de 2003, Garzón suspendeu as actividades do Partido Comunista de Espanha Reconstituido (PCE-r), em função de suas actividades ilícitas de apoio ao GRAPO.

Não estou preocupada com Garzon, estou preocupada com a tendência que os Estados têm para amnistiar crimes praticados contra os direitos Humanos.

Garzón não dorme e não se cala. Temos de reconhecer.
E os crimes que investiga agora são crimes que não deviam ser alvo de leis de clemência. Na sua maior parte, são crimes contra os Direitos Humanos, Convenções Internacionais que os protegem e, muitas vezes, são crimes de sangue.
E há que não esquecer que, há vários anos, associações de familiares das vítimas pedem ajuda estatal para as procurar. Organizações de direitos humanos e associações de igrejas entregaram a Baltasar Garzón uma lista com os nomes de 130 mil desaparecidos.
É isto que me preocupa, não é Garzon que, pelo supra referido não pode ser acusado de tendências de esquerda ou de direita.
Parece-me que a preocupação dele é mesmo a defesa dos direitos humanos. Se algum dia não os respeitar, deverá ser tão condenado como este tipo de leis.
E se tivermos em conta que logo em 1988 o comité dos direitos humanos da ONU tinha exigido à Espanha que abolisse a lei da amnistia, que impede milhares de familiares das vítimas da guerra civil de recuperar corpos das fossas comuns, talvez cheguemos à conclusão de que esta lei da amnistia e outras tantas como esta são leis aberrantes.
É por isso que nos devemos bater. Não por Garzón.
Não sou contra ou a favor do franquismo, não contra ou a favor de posições políticas mas, por todos os que foram vitimas de actos que a meu ver têm na sua base causas fúteis, porque políticas e inconstitucionais. Porque, se ninguém pode ser prejudicado pela sua tendência política, não pode ser morto por ela.
Proteger os estados em atitudes como estas é alimentar este tipo de crimes que se repetirão no tempo e, que num Mundo que se quer globalizado, serão tratados de forma diferenciada de acordo com as politicas governamentais no momento, é condenar-nos a todos a democracias apodrecidas e amorfas.
É intolerável que assim se pense e que tal se admita.
Garzón entende que os crimes de sequestro, por serem delitos continuados, não se sujeitam à prescrição, nem são passíveis de amnistia. Entendimento que vai ao encontro das Convenções da ONU sobre direitos humanos.
Sejamos honestos. Sejamos verticais. As vítimas ou os seus familiares podem ser amanhã... - Nós.
Queremos que leis como estas continuem a ser "fabricadas" e entrem em vigor?
Independentemente de ter ido ou não além do que poderia, a censura vai segura e directamente do meu ponto de vista para a Lei de amnistia de 1977.
É Garzón que está a dividir a Espanha ou é quem acusa este desejo de saber o destino dos familiares mortos de revanchismo cego e ilegalidade?
Uma coisa é certa: os Direitos Humanos são aplicáveis a todos os Homens e, assim sendo, quem não os respeita deve ser punido e não amnistiado.
Há sangue nas mãos dos dois lados, resultante de uma luta entre irmãos por um poder político sem continuação. Vamos permitir que volte a acontecer e permitir que uma lei os apague?
Então deixemos de falar no Holocausto. Não se julguem as brutalidades e genocídios da guerra da Bósnia, era desnecessário terem apurado as responsabilidades de Sadam, e as de Pinochet, e as dos responsáveis na Argentina...continue-se a manter Guantánamo...
Fechemos os olhos e deixemos que todos pensem que mais tarde ou mais cedo matar, sequestrar, estropiar e torturar o seu semelhante é amnistiável.

Adelina Barradas de Oliveira

(A Autora é Juíza Desembargadora e este texto foi redigido para publicação concertada no Ré em Causa Própria, o seu blogue no Expresso, e, como post convidado, aqui no Machina Speculatrix. Estamos agradecidos por ter aceite o convite.)