Levámos um murro no estômago, fomos empurrados pela escada abaixo até ao fundo do poço, enfiaram-nos a cabeça numa cloaca cheia de merda da humanidade que somos, ainda por cima obrigaram-nos a olhar-nos ao espelho e contemplar a nossa figura - e, por fim, gostámos. Vimos uma espécie animal com que lidamos todos os dias, mas que só por vezes se revela. Relato de uma brutal experiência de espectador de teatro.
O polaco Krystian Lupa, um encenador teatral de renome mundial, Prémio Europa de Teatro 2009, veio a Madrid dirigir a companhia do Teatro de La Abadia. Matéria-prima: a peça Endgame (Fin de Partida), de Samuel Beckett, escrita nos anos 50 do século passado.
O título aponta para uma situação típica da parte final de certos jogos (como o xadrez), quando já restam poucas peças e a gama de movimentos possíveis para as peças está fortemente limitada. Aqui só há quatro personagens e todas estão em estado de "fim de partida". Sendo uma peça em que não há, propriamente, acção - o que será isso, afinal? - alguns classificam esta obra como pertencendo ao Teatro do Absurdo. Aquilo que, provavelmente, melhor representa o que Beckett disse com esta peça é a frase "Nothing is funnier than unhappiness." Na tradução espanhola proposta pela companhia: "Nada es tan divertido como la desgracia". Neste caso, a desgraça tem um passado (fala-se dele), mas não sinais de que tenha um futuro. Apesar de a um dia se seguir outro.
Nesta peça, as quatro personagens estão tão presas como quatro peças num final de partida num jogo de xadrez. Hamm e Clov estão na relação senhor-servo, mas Hamm não pode pôr-se de pé (paraplégico e cego), apesar de ser o dominador, enquanto Clov, que está sempre de pé (numa espécie de mobilização infinita), não serve apenas como servo, mas também como uma espécie de amigo. Já Nagg e Nell (pais de Hamm), ficaram com as pernas paralisadas num acidente de bicicleta, encontram-se confinados a dois contentores de lixo e estão sempre na horizontal. Que final de partida...
Algumas frases do encenador, Krystian Lupa, ao El País (2 de Abril p.p.):
«No princípio concordei em fazer Beckett desde que fosse uma adaptação muito livre. Mas a minha imposição revelou-se desnecessária, porque o que aprendi aqui é que no mundo de Beckett o não dito é tão vasto, tão livre e tão imenso, que não é preciso saltar nem uma só palavra. (…) Como não podia impor uma mudança na estética teatral do seu tempo, escreveu de uma tal forma que as mudanças foram impostas a partir do próprio texto. (…) Os protagonistas de Endgame a maior parte do tempo ou mentem ou calam. E, mesmo assim, e aí está a genialidade do autor, o que realmente querem dizer está presente em todos os momentos. Basta saber alcançar e compreender.»
«O cinismo representa com frequência a postura do metafísico face ao sentimentalismo omnipresente.»
Lupa com José Luis Gómez, o actor na cadeira de rodas do seu personagem (Foto Uly Martín, El País)
Aos que só acreditam no teatro como exercício de alegria, em geral aos que só gostam de contemplar o que os faz felizes, só posso dar um conselho: mantenham-se afastados desta peça e, em particular, desta apresentação. Ela poderia mostrar-vos o interior do mundo humano - e isso seria uma desgraça para a vossa necessidade de consolo.
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Uma das práticas que aqui verificamos consiste em algumas companhias teatrais documentarem em vídeo o processo criativo e dá-lo, por esse meio, como fruição complementar ao público. O que também resulta, julgo eu, em compreensão acrescida.
No caso deste espectáculo, o respectivo vídeo-blogue inclui uma série de apontamentos sobre os ensaios onde, designadamente, podemos observar Krystian Lupa a lançar a primeira leitura do texto; a companhia a discutir o tema do sofrimento (a partir da leitura de Lupa: “quem não sofreu, não tem direito a julgar se sou bom ou mau” ) como parte do processo de penetrar na obra; uma inquirição sobre o significado do nome Hamm para uma personagem (em que sentido uma pessoa pode ser como um martelo?); os actores a fazerem-se ao vestuário e aos adereços; o encenador a explicar como quer que seja o olhar de uma dada personagem e a mostrar o que quer dizer com o seu próprio olhar – e depois a interpretar outra personagem; alguns segredos da particular cenografia que Lupa concebeu para este espectáculo e como ela foi tomando forma; dois actores a tentarem acertar com o penteado que convém às personagens que vão incarnar; aspectos da finalização do cenário, onde o seu criador mete a mão directamente na massa; como se fizeram os autênticos sarcófagos que substituem os caixotes do lixo em que normalmente encontraríamos Nagg e Nell, os pais de Hamm – e como se habituam a eles os actores que estarão nesses papéis; uma discussão sobre a importância do cão de trapos, só com três pernas, que aparece na peça; o encenador a construir uma história para além da história que consta do texto, dando-lhe um horizonte que ajuda à sua leitura; Ros Ribas, o premiado fotógrafo de teatro, a cobrir um ensaio; Lupa, perto da estreia, a aconselhar uma certa atitude aos seus actores quanto ao desafio que tudo aquilo constitui.
Deixamos abaixo o clip promocional deste espectáculo.