16.11.09

predadores?! (ou: descer aos infernos sem perder o pé)



João Rodrigues (JR), do Ladrões de Bicicletas, a propósito do fim das taxas moderadoras no internamento e na cirurgia de ambulatório, escreve que "agora só falta acabar com as outras taxas no SNS. Eliminar os mecanismos que tomam os cidadãos por predadores. Romper com a herança liberal de Correia de Campos".
Um ponto é concordar que foi tolice do governo do PS introduzir "taxas moderadoras" em "consumos" que não são susceptíveis de serem moderados, pelo menos por vontade própria de quem paga. E aplaudir a correcção.
Outro ponto, de natureza mais geral, é o ataque de JR a todas as taxas moderadoras com base numa certa metafísica da natureza humana. JR parece acreditar que as pessoas são naturalmente cooperantes, cuidadosas com o bem público, atentas às consequências dos seus actos no plano dos mecanismos colectivos, altruístas e esclarecidas acerca do próprio funcionamento do altruísmo. JR parece acreditar que quem não tenha essa visão da "essência" dos indivíduos em sociedade só pode estar a tratar os cidadãos como predadores.
Também sou dos que pensam que os cidadãos não devem ser basicamente tratados como máquinas de estímulos, disponíveis para as receitas de "incentivos" que os economistas gostam de cozinhar. Também sou dos que acreditam que a melhor forma de avançar na melhoria dos laços sociais é investir nos laços sociais enquanto tal, enquanto estrutura de significados. Também sou dos que não acreditam que tudo isso se resuma a prémios e castigos. Contudo, considero perigosíssima a ingenuidade de JR: os mecanismos colectivos são, realmente, muito sensíveis aos verdadeiros predadores. Tal como são sensíveis aos que simplesmente não param para pensar nas consequências das suas acções. Bem como aos que simplesmente não compreendem os efeitos indesejáveis, em termos agregados, de muitas acções individuais aparentemente inócuas.
Não sei bem qual seja a origem da aparente desvalorização destas dificuldades por parte de JR. Será JR um racionalista extremo que acha que os indivíduos puxam pela cabeça até compreenderem o que fazer por puro cálculo intelectual? Será JR um metafísico da natureza humana, que vê as pessoas como naturalmente, ou essencialmente, boas e altruístas? Não sei, mas sinto uma curiosidade crescente pela sistemática abordagem metafísica de certa esquerda ao problema da natureza humana em sociedade. Eu acredito que mecanismos tão imperfeitos como as taxas moderadoras são importantes dentro de um realismo moderado acerca da forma como funcionamos em colectivos: mesmo que sejamos razoavelmente altruístas, e que sejamos determinados mais por valores e por uma genuína implicação na relação social do que por incentivos, precisamos de "sinais de trânsito". Precisamos de marcas que nos chamem a atenção para o significado último de certos actos, cujas consequências não são directas nem imediatas. Precisamos de alertas.
Reflectir nisto é algo que só interessa a quem o bem comum e as suas ferramentas mereçam cuidado. Acredito piamente que JR está nesse grupo. Eu também estou. Mas bato-me para reduzir a carga metafísica de certos pressupostos. E não estou disposto a ser tratado como neoliberal por causa disso. Porque verdadeiramente desastroso para a promoção do bem comum seria transformá-lo numa piedosa abstracção iluminada por uma qualquer metafísica apressada acerca da natureza humana. Especialmente se essa metafísica apressada servir para condenar a priori certas possibilidades de organização colectiva.

(produto A Regra do Jogo)