Com brevidade, conta-se assim a história do "Homem de Piltdown". Em 1912, foram encontrados na localidade de Piltdown, na região de Sussex, em Inglaterra, umas ossadas que foram consideradas vestígios de um antepassado dos humanos modernos com 500 mil anos, um "elo perdido" da evolução, que apresentava características de homem e de macaco. Os fósseis foram levados para o Museu de História Natural de Londres e lá ficaram, durante mais de 40 anos, até cientistas da Universidade de Cambridge terem conseguido provar que os fósseis eram falsos. O museu só reconheceu o engano histórico a 21 de Novembro de 1953, há cerca de 56 anos. O autor da fraude, no entanto, nunca foi descoberto.
Dado que este é um curioso motivo de reflexão acerca das relações entre ciência, pseudociência e sociedade, gostaria de acrescentar aqui qualquer coisa. Socorrendo-me de quem saiba mais do que eu, é claro. Stephen Jay Gould faz, em O Polegar do Panda (Gradiva), uma análise deste caso (pp. 120-138), extraindo dele certas conclusões. Resumo como segue a leitura de Gould.
Nos anos 1910, foi apresentado na Grã-Bretanha o que ficou conhecido como "o homem de Piltdown": fragmentos de uma caveira, incluindo partes de um crânio e o maxilar inferior, datados como muito antigos. O notável é que o crânio era claramente humano e a mandíbula claramente simiesca. A descoberta foi considerada notável pelos maiores paleontólogos ingleses e demorou trinta anos a estabelecer com segurança que se tratava de uma fraude: uma mistura intencional de remanescentes de dois animais diferentes. Gould pergunta-se "porquê?" e aponta quatro razões:
(i) a imposição de fortes esperanças sobre evidências dúbias: a paleontologia inglesa desesperava com falta de indícios dos seus antepassados, enquanto os franceses lidavam com superabundância de restos de Neanderthaler e Cro-Magnons - e agora, de repente, o homem de Piltdown, nosso antepassado mais antigo, reduzia o Neanderthaler a ramo lateral;
(ii) redução de anomalias ("buracos" numa teoria científica) encaixando-as em preconceitos culturais: favorecia as teorias da primazia do cérebro na evolução humana: foi um cérebro moderno disponível desde o princípio que nos deu vantagem evolutiva e inspirou as modificações no corpo;
(iii) redução das anomalias equiparando os factos à expectativa: o crânio era completamente moderno, mas na altura foi descrito como se tivesse características próprias para ser tão antigo como era necessário para o engano funcionar;
(iv) prevenção da descoberta pela prática: o comportamento do Museu Britânico tornava praticamente impossível a outros investigadores, que não os proponentes do achado, examinar os originais da caveira.
No global, Gould considera que isto mostra a ciência "como uma actividade humana, motivada pela esperança, pelos preconceitos culturais e pela busca de glória, cambaleando na sua trajectória errática em direcção a um melhor conhecimento da natureza".