22.10.07

A autoridade moral da natureza (5/6)

O episódio relatado por (Allen 2004) é significativo da importância atribuída por autoridades políticas à possibilidade de se socorrerem da autoridade da natureza em matéria social. Allen procura explicar as razões pelas quais, em 1740, foi queimado publicamente em Paris, pelo carrasco oficial, o livro de Bernard Mandeville, The Fable of the Bees, por ocasião da publicação da primeira versão francesa.



O recurso à figura do enxame de abelhas permite à imaginação um ponto de Arquimedes para extravasar dos limites da situação humana em que nos encontramos e contemplar uma “sociedade” como um todo, como se víssemos de uma só vez todas as acções e o seu resultado, fora do constrangimento de estarmos nós mesmos imersos nas interacções. Nesse quadro, a imagem tradicional das abelhas servia para justificar o conceito de ordem, de forma independente (antecedente) da vontade humana, de forma a fazer aceitar que a ordem política e social satisfaz objectivos funcionais que não se sujeitam aos objectivos dos indivíduos. É que o enxame de abelhas, com a sua divisão de trabalho, oferece um modelo de diferenciação social que muitos ao longo de séculos transpuseram para as classes sociais como ordem. Assim, a ideia de ordem aparece, não como uma invenção humana, mas como algo que deriva da própria natureza: o que “é” vem assim legitimar o que “deve ser”.



Ora, a obra de Mandeville, cuja subtítulo era Private Vices, Public Benefits, apresenta uma tese completamente diversa. Segundo Mandeville, que muitos consideram um proto-Adam Smith, os vícios privados podem resultar claramente vantajosos para a comunidade se forem geridos de forma habilidosa por políticos competentes: o vício do bêbado é que dá emprego ao empregado e ao dono da taberna, ao comerciante de vinhos e ao agricultor. Em geral, são os vícios dos humanos – os seus apetites e tudo o que fazem para os satisfazer – que alimentam o trabalho e a riqueza das sociedades. A tese da Mandeville invalida o uso da “natureza” – em particular da imagem da “sociedade” de abelhas – para legitimar certas construções morais e políticas. Para ele, não há outro fundamento para a ordem social que não seja a procura do bem-estar (económico), a satisfação egoísta dos apetites. Estas teses de Mandeville contrariam uma série de teorias morais que apelavam à natureza como fundamento. Contraria a ideia de que os humanos, sendo naturalmente racionais, devem usar a razão para dominar os seus apetites e alcançar a virtude. Contraria também a ideia de que os humanos são naturalmente virtuosos.



Para Mandeville, a construção da autoridade moral ou política assenta na produção do esquecimento da distinção entre educação e natureza. O esquecimento transforma o “dever ser” em “é”, em dois sentidos. Por um lado, por habituação, as normas culturais que definem o “dever ser” acabam por transformar-se no “é” das práticas efectivas. Por outro lado, se os moralistas conseguem fazer aceitar as suas prescrições como baseadas na própria natureza, o que se aceita como o “é” da natureza aceita-se como o “dever ser” moral. Mas esse processo é, no seu conjunto, uma construção social.



Não é, pois, de espantar a queima censória da obra de Mandeville. A perturbação causada pelas suas teses anti-naturalistas evidencia a importância da “naturalização” das regras sociais como meio de realizar um certo tipo de ordem política.



REFERÊNCIAS

(Daston e Vidal 2004a) DASTON, Lorraine e VIDAL, Fernando (eds.), The Moral Authority of Nature, Chicago, The University of Chicago Press, 2004

(Allen 2004) ALLEN, Danielle, “Burning The Fable of the Bees: The Incendiary Authority of Nature”, in (Daston e Vidal 2004a), pp. 74-99



Matthias Merian, Alchemist following Nature's fooprints.
Ilustração in Atalanta fugiens, 1617

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Apontamentos anteriores desta série:


A autoridade moral da natureza (4/6)


A autoridade moral da natureza (3/6)


A autoridade moral da natureza (2/6)


A autoridade moral da natureza (1/6)