15.10.07

A autoridade moral da natureza (2/6)

"Natural" como padrão? E com que consequências?




Por exemplo na tradição cristã medieval, a Natureza é o vigário de Deus, com influência directa na questão do pecado. (Puff 2004) analisa, para um vasto período entre a Alta Idade Média e o século XVIII, julgamentos civis de “vícios contra a natureza”, categoria que incluía, para alguns autores, toda uma série de actos sexuais (masturbação, bestialidade, sexo anal entre homem e mulher, actos sexuais entre pessoas do mesmo sexo) que não contribuíam para a procriação e, desse modo, eram considerados como actos de resistência ao curso natural das coisas. Em particular, a actividade sexual entre pessoas do mesmo sexo foi considerada pelos pensadores cristãos como “contra natura”, o que dizia da sua gravidade (acarretava em geral a sentença de morte).


Mas a mudança dos “peritos em natureza” (dos sacerdotes para os cientistas) não muda necessariamente a essência do apelo ao natural como legitimador de um padrão. Também (Vidal 2004) analisa a relação entre as concepções de pecado e de natureza. Vidal chama a atenção para o mecanismo da autoridade moral da natureza: a “ordem natural” assenta em normas tidas como transcendendo quer a vontade individual, quer as variações culturais, quer as circunstâncias históricas – desde que essas normas sejam admitidas como reconhecidas pela razão através do estudo empírico da natureza. Vidal estuda o funcionamento desse mecanismo com o enquadramento medieval da masturbação, considerada como um “crime contra a natureza”, no sentido em que “crime” e “pecado” vão juntos. Para isso, analisa a mudança de enquadramento dessa actividade. No quadro da teologia tridentina e da Reforma de meados do século XVI, o que era crucial no pecado era o desejo. O pecado variava consoante o objecto do desejo aquando da masturbação: o homem que deseja uma mulher casada quando se masturba, comete adultério; que deseja uma virgem, estupro; um parente, incesto; uma freira, sacrilégio; outro homem, sodomia. Já no século XVIII a masturbação passou a ser considerada também um perigo para a saúde, juntando as duas ordens de considerações.




A título de ilustração deste mecanismo de coalescência do descritivo e do normativo, Vidal aprecia a obra de Samuel Auguste André David Tissot (1728-1797), L’Onanisme, na qual se considera que a masturbação realiza a utopia das leis que se fazem cumprir a si mesmas, pelos seus próprios efeitos, numa espécie de justiça imanente assente na natureza: para bem da sua saúde, o homem deve actuar bem moralmente, segundo a natureza; se não o fizer, a doença levá-lo-á rapidamente à decadência e à morte. Que seja o médico, o cientista, a interpretar a autoridade da natureza – não modifica radicalmente o carácter do dispositivo.

REFERÊNCIAS

(Daston e Vidal 2004a) DASTON, Lorraine e VIDAL, Fernando (eds.), The Moral Authority of Nature, Chicago, The University of Chicago Press, 2004

(Puff 2004) PUFF, Helmut, “Nature on Trial: Acts ‘Against Nature’ in the Law Courts of Early Modern Germany and Switzerland”, in (Daston e Vidal 2004a), pp. 232-253

(Vidal 2004) VIDAL, Fernando, “Onanism, Enlightenment Medicine, and the Immanent Justice of Nature”, in (Daston e Vidal 2004a), pp. 254-281




"As consequências fatais da masturbação" em Le livre sans titre, Paris, 1844 (2ª edição)

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