As grandes religiões dominantes no Ocidentes fizeram um percurso civilizacional que as conduziu a uma certa intelectualização. Nesse espaço cultural, as instituições (as igrejas) preocupam-se com a ciência, procuram esse saber, procuram conciliações e alianças entre conhecimento da matéria e vida do espírito. Individualmente, também muitos crentes esforçam-se por conciliar a sua fé com os seus conhecimentos científicos. Há nisso algo de atraente: a religião não tem de ser obscurantismo. Mas há nisso, também, uma cedência ao núcleo ideológico central do cientismo. Na ideologia do cientismo, a ciência tende a tudo explicar e as alternativas de compreensão que não passam pela ciência tendem a extinguir-se. Muitas vezes, a “fé esclarecida” assemelha-se perigosamente à fé explicada aos intelectuais.
Essa intelectualização abriu um espaço às concepções mágicas do sagrado. Nessa mundividência, a manipulação de certos objectos, com certas conotações, por pessoas com certos “saberes” e “poderes”, produz certos “resultados” e “resolve” certos problemas. Por encomenda. Esse é o fascínio de certas seitas, mas também de certas franjas das igrejas dominantes. Que assim respondem à dominante “ideologia do tecnológico”. Um caso que, para o meu ver, é disso exemplo: as práticas exorcistas, que a hierarquia mais formal vê com maus olhos e tenta enquadrar e limitar, mas que continuam a existir e são bem aceites pela “religião popular”. O exorcismo pretende resolver, por uma manipulação de certos sinais, uma avaria do espírito. A possessão é um desarranjo que um bom mecânico repara. O exorcista é o especialista que detém o segredo das peças de origem. A marca da sua capacidade tecnológica é que a sua intervenção transforma um comportamento anterior aberrante num comportamento posterior estatisticamente normal. E tudo isto depois de o behaviorismo mais descarado ter sido expulso da posição dominante mesmo na psicologia científica.
Este, como outros fenómenos de magia “para resolver desarranjos”, traduz talvez uma resposta à intelectualização das religiões oficiais dominantes. À tendência pesada para esquecer o corpo, para esquecer as emoções e os afectos que deveriam contar numa experiência do sentido (do sagrado). Mas, creio eu, esse recurso à tecnologia do religioso traduz a nossa própria redução à condição de robot que precisa de uma intervenção. A experiência tecnológica da religião é o grau zero do sentido – mas vai muito bem com o ar do tempo.
(Publiquei este texto originalmente, como convidado, no extinto Terra da Alegria, a 21-Jun-2004)