16.10.07

A autoridade moral da natureza (3/6)

No que toca aos humanos, a “natureza” pode dizer respeito aos ditames que regem a espécie ou aos que regem um indivíduo. Falar da “natureza” de uma pessoa é falar de uma base fixa dessa mesma pessoa ao nível físico: um conjunto de aptidões e inclinações que determinam as suas capacidades.


(Groebner 2004) refere que os textos de Galeno, que a partir do século XIII influenciaram a medicina europeia, ensinavam que as criaturas vivas eram compostas de qualidades (quente, frio, húmido, seco) e que os seus comentadores medievais usavam o termo complexio para descrever as misturas dessas qualidades (activas ou passivas) que determinavam quer a natureza da espécie quer a natureza do indivíduo. Era dos “humores naturais” do indivíduo, bem como da relação entre os líquidos do corpo e as qualidades dos planetas descritas pela astrologia, que dependia o respectivo comportamento, aparência, disposição, numa infinidade de combinações possíveis. Daí a importância do estudo da fisionomia, que se considerava reveladora da constituição interna. A partir do século XVI, contudo, o sentido de complexio desloca-se para se tornar mais representativa da natureza do grupo (raça), através das características exteriores (como a cor da pele).

No tocante ao problema da natureza dos humanos como espécie, é interessante notar, com (Schiebinger 2004), momentos de questionamento da própria unidade desse grupo natural. Schiebinger lembra episódios históricos (século XVIII) relativos aos testes de novos medicamentos ou novos tratamentos. Esses testes eram realizados para garantir que os seus efeitos não seriam mais prejudiciais do que benéficos. Ora, testar um novo fármaco num grupo de escravos ou de mulheres só daria resultados relevantes para outros grupos se a constituição natural do grupo de teste e dos outros grupos fosse similar. Se a “natureza” do escravo ou da mulher diferisse da do homem branco, o resultado do teste podia não ser transponível. Épocas houve em que a diferença de sexo era considerada relevante nessa óptica. Na passagem do século XVIII para o século XIX houve quem levantasse a questão da validade das experiências médicas com negros quando se pretendesse usar os resultados com brancos. Esta forma de “racismo científico” mostra o carácter histórico da concepção de “natureza humana”, concepção construída segundo critérios que hoje reconhecemos facilmente como pouco “naturais”.

REFERÊNCIAS

(Daston e Vidal 2004a) DASTON, Lorraine e VIDAL, Fernando (eds.), The Moral Authority of Nature, Chicago, The University of Chicago Press, 2004

(Groebner 2004) GROEBNER, Valentin, “Complexio / Complexion: Categorizing Individual Natures, 1250-1600”, in (Daston e Vidal 2004a), pp. 361-383

(Schiebinger 2004), SCHIEBINGER, Londa, “Human Experimentation in the Eighteenth Century: Natural Boundaries and Valid Testing”, in (Daston e Vidal 2004a) , pp.384-408