26.10.07

Futebol de mercado

A ideologia de que os mecanismos de mercado servem para tudo está muito espalhada. Também está muito presente a ideia de que ao Estado tudo se pode pedir, mesmo coisas que nenhuma outra organização acha aconselhável para si própria. (Como dizia o ministro das finanças há pouco tempo, nenhum dos empresários que sugerem que o Estado devia despedir 25% dos funcionários públicos alguma vez se meteria na via de despedir um quarto dos seus funcionários.) Acho que chegou a hora de começar a sugerir certas coisas a outros actores desta peça gigantesca.

O que temos a propor é um mecanismo de mercado para nomeação dos árbitros de futebol ao estilo “mercado livre”. Então:


(1) Qualquer indivíduo maior e vacinado se poderia intitular árbitro e inscrever-se numa lista pública de pessoas disponíveis para arbitrar jogos da Liga (chamamos Liga sem especificações, porque o mecanismo poderia ter tantas instâncias quantas as ligas existentes). Faz-se assim a vontade aos que acham que impôr qualificações mínimas a certas profissões é uma intromissão de alguma forma de Estado na vida privada dos cidadãos, das empresas ou da “sociedade civil”.

(2) Depois de divulgado o calendário de jogos para uma época começava o processo de contratar árbitros para cada encontro. Os dois clubes implicados em cada encontro tinham de contratar, por mútuo acordo, um árbitro para esse jogo (simplificamos: chamamos árbitro a uma equipa de árbitros). O acordo haveria de incluir os custos da operação e a repartição desses custos pelos interessados. Faz-se assim a vontade aos que pensam que todos os valores se pagam em dinheiro e que o único critério útil para um serviço é a satisfação (imediata?) das partes.

(3) Os clubes podiam contratar árbitros com a antecedência que quisessem: podiam resolver um jogo de cada vez ou fazer as contratações de árbitros para toda a época. Os primeiros a contratar tinham maior margem de escolha, por estarem ainda mais árbitros disponíveis – mas podia haver vantagens em esperar para ver como se comportavam certos árbitros. Os jogos para os quais não houvesse árbitros disponíveis não se realizariam e pontuariam como derrota para ambos os clubes. Há aí um risco, mas também um potencial: se o mercado de trabalho dos árbitros fosse livre, isso poderia criar emprego. Há uma série de pessoas com qualificações superiores em filosofia e psicologia que podiam passar à arbitragem de futebol.

(4) Aquilo a que hoje se chama “comprar o árbitro” seria completamente integrado na nova modalidade: apenas seria exigível que os dois oponentes num jogo concordassem nos termos da compra. Seria assim aplicada a ideia de que “tudo está bem quando as partes interessadas concordam”. Isto daria satisfação aos que pensam que a verdadeira moralidade é que a moralidade seja reconduzida aos mecanismos de mercado.

(5) Qualquer mecanismo de nomeação oficial de árbitros seria abolida, fazendo assim sonhar com novos voos aqueles para quem as instituições são sempre uma espécie de resquício do estalinismo.

(6) “Novos voos” seria, por exemplo, dar os seguintes passos: acabar com os órgãos de gestão do futebol, criar um campeonato espontâneo, aplicar o mesmo mecanismo de contratação de árbitros a outro aspecto a que os dois adversários num encontro são sensíveis: a compra do resultado. Se as duas equipas que se confrontam num jogo pudessem acordar o respectivo resultado, nem seria preciso jogar. E todos podiam fazer o mesmo com todos os outros, portanto seria justo e transparente. Então, porque não?

Admito que este esquema ainda está um bocadinho verde. Mas pode ser refinado. E traria mais mercado à sociedade. Seria o futebol de mercado. Não é isso que alguns parecem querer para todos os aspectos da nossa vida comum?