11.6.07

O teu corpo é uma máquina


O que eu vejo em David Cronenberg é também uma reflexão sobre os caminhos do corpo.

Em Videodrome (já lá vão uns anitos) o corpo embrenha-se numa luta desesperada com o banal televisor doméstico.

Em A Mosca, um corpo humano e um corpo não humano entram em confluência e a mente não pode ficar indiferente à sua base material (e, para essa questão, não chega sequer a ser muito importante se o corpo é ou não a única base da mente).

Em O Festim Nu não há grande novidade: todos sabemos que as drogas fornecem ao corpo certas instruções que se desviam um pouco da relação habitual entre organismo e ambiente.

Em M. Butterfly é-nos dado a ver que o que o corpo mostra ou oculta não é tudo o que há a mostrar ou a ocultar em nós: aquele "M." do título é ambíguo entre Mr. e Mrs. e isso passa-se com grande poesia e elevação.

Em eXistenZ já não se brinca com mecanicismos ingénuos: o que é maquínico e o que é propriamente biológico estão já na mesma família.

Em Spider revela que se a nossa unidade de processamento central nos fornecer leituras intermitentes do mundo, o mundo para nós se torna realmente uma intermitência entre vários mundos - e não há objectividade que resista a isso (nem o espectador escapa à dúvida acerca de qual das histórias possíveis esteve a ver).

A ideia, aqui, não é traçar um (mesmo que breve) percurso fílmico de Cronenberg. A ideia é apresentar o realizador Cronenberg como um filósofo do corpo, do corpo mutante: por dentro e por fora; na carne e nos neurónios; no jogo solitário com a transformação genética, tanto como no jogo social que usa diferencialmente os mecanismos de máscara; contra a máquina ou misturando-se com a máquina; entrando "de corpo e alma" na realidade virtual. Mas, claro, pode sempre ser válida a hipótese de que eu esteja a tresler.

Proponho, então, a imagem abaixo. É de Crash (1999), do mesmo Cronenberg. Neste filme há carros, carros velozes, amantes de carros velozes, acidentes e as próteses que se lhes seguem, corpos, sexo, malucos por sexo em carros velozes... ou deveria antes dizer "malucos por sexo com carros velozes"? Não vejo, aí, contudo qualquer ponta de pornografia. Essa loucura por carros vemos facilmente nas nossas cidades. Próteses, parece que queremos poder dispor delas para tudo. Então, o que há de especial?

O que Cronenberg nos propõe é o amor humano pela máquina. O desejo sexual pela máquina. O erotismo desta imagem de Crash diz tudo: este rasgão no carro acidentado é-nos claramente proposto como um sexo que se acaricia. E um automóvel nem sequer é um robot muito sofisticado. Tudo o que vês nesta imagem está apenas no teu olhar.