21.6.07

Criacionismo, ciência e política

O muito interessante blogue Ciência ao Natural (de onde roubamos a ilustração abaixo) chama a atenção para um projecto de resolução da Assembleia Parlamentar do Conselho da Europa sobre "os perigos do criacionismo na educação". Imagino que Ciência ao Natural partilhe a opinião do blogue Pharyngula, onde parece ter encontrado a referência deste documento político, neste post. Nesse post de Pharyngula demonstra-se grande entusiasmo pelo facto de os órgãos políticos europeus tomarem posições tão interessantes sobre a matéria. Ora, isto sugere-me algumas perguntas, que já me andavam a bailar na cabeça desde que mão amiga me fez chegar tal texto.

Eu sou completamente contrário ao criacionismo, quer como ideia julgada no plano científico (usa "esquemas" de argumentação e "factos" que me parecem completamente carentes de qualquer forma de racionalidade, tanto quanto esta nos é acessível e necessária à investigação científica), quer como ideia religiosa (é um dos produtos dos piores aspectos da religião, entre os quais a mania de que os humanos e o que existe ao cimo da Terra é o melhor que existe e pode existir no Universo e que o pobre do Deus teria certamente de ter obedecido a essa regra). Mas, e aqui vem o mas, vale a pena ler o tal texto apresentado na Assembleia Parlamentar do Conselho da Europa e fazer algumas perguntas. Tais como:

- será que compete mesmo a uma Assembleia Parlamentar fazer declarações solenes acerca da cientificidade de uma qualquer teoria?

- será que compete a uma assembleia política declarar quais são e quais não são os factos científicos num dado domínio?

- será que compete a um parlamento fazer proclamações acerca do que são e do que não são raciocínios científicos? do que é e do que não é rigor científico?

- será que compete a uma qualquer maioria política aprovar textos acerca do que é sabido e não é sabido numa dada disciplina científica?

Confesso que tudo isto me parece muito perturbador. Por este caminho, qualquer dia uma maioria política particularmente obtusa poderia desaprovar o heliocentrismo e considerar que o mundo gira à volta da Terra. Sim, porque, a partir do momento em que se admite que uma maioria política, num dado momento, pode fixar critérios de cientificidade, poderemos no futuro ter outra maioria política a fixar outros critérios e a querer impô-los.

E nós havemos de aplaudir isso?

Não deveremos antes concentrar-nos em que o trabalho científico possa obedecer às suas próprias regras (já que, por imperfeitas que sejam, não podem ser melhoradas por intervenção exterior) e deixar que, depois, mas só depois, a sociedade, a comunidade política, decida o que acha melhor para seu governo? É que a sociedade não tem de reger-se só por critérios científicos, terá de recorrer também a outros planos (o plano ético ou prudencial, por exemplo) - mas será muito perigoso admitir que seja a comunidade política a ajuizar em matéria científica, a intervir na disputa racional pela compreensão do mundo, ou até a fixar o que seja racionalidade.

É por isto que, contrariamente a outros, não fico nada empolgado com aquele projecto de resolução que anda por lá na Assembleia Parlamentar do Conselho da Europa. Acho que ele autoriza demasiados equívocos. E pode tornar-se, a prazo, um tiro no pé: quer dizer, fazer com que, como nos EUA, os fundamentalistas religiosos queiram usar o poder político para impôr o seu obscurantismo. Prezo muito os mecanismos políticos da democracia, mas prezo também muitíssimo o princípio de que nem tudo pode ser julgado nos parlamentos. Certas áreas de uma vida pública decente devem manter a sua autonomia e os órgãos de decisão política devem zelar apenas por essa autonomia, em vez de intervir directamente em questões de conteúdo. Julgo ser o caso da ciência.



(Outras postas em outros blogues também reflectem o mesmo projecto de resolução da Assembleia Parlamentar do Conselho da Europa, tais como Palmira F. da Silva no De Rerum Natura ou Rastos de Luz).