O muito interessante blogue Ciência ao Natural (de onde roubamos a ilustração abaixo) chama a atenção para um projecto de resolução da Assembleia Parlamentar do Conselho da Europa sobre "os perigos do criacionismo na educação". Imagino que Ciência ao Natural partilhe a opinião do blogue Pharyngula, onde parece ter encontrado a referência deste documento político, neste post. Nesse post de Pharyngula demonstra-se grande entusiasmo pelo facto de os órgãos políticos europeus tomarem posições tão interessantes sobre a matéria. Ora, isto sugere-me algumas perguntas, que já me andavam a bailar na cabeça desde que mão amiga me fez chegar tal texto.
Eu sou completamente contrário ao criacionismo, quer como ideia julgada no plano científico (usa "esquemas" de argumentação e "factos" que me parecem completamente carentes de qualquer forma de racionalidade, tanto quanto esta nos é acessível e necessária à investigação científica), quer como ideia religiosa (é um dos produtos dos piores aspectos da religião, entre os quais a mania de que os humanos e o que existe ao cimo da Terra é o melhor que existe e pode existir no Universo e que o pobre do Deus teria certamente de ter obedecido a essa regra). Mas, e aqui vem o mas, vale a pena ler o tal texto apresentado na Assembleia Parlamentar do Conselho da Europa e fazer algumas perguntas. Tais como:
- será que compete mesmo a uma Assembleia Parlamentar fazer declarações solenes acerca da cientificidade de uma qualquer teoria?
- será que compete a uma assembleia política declarar quais são e quais não são os factos científicos num dado domínio?
- será que compete a um parlamento fazer proclamações acerca do que são e do que não são raciocínios científicos? do que é e do que não é rigor científico?
- será que compete a uma qualquer maioria política aprovar textos acerca do que é sabido e não é sabido numa dada disciplina científica?
Confesso que tudo isto me parece muito perturbador. Por este caminho, qualquer dia uma maioria política particularmente obtusa poderia desaprovar o heliocentrismo e considerar que o mundo gira à volta da Terra. Sim, porque, a partir do momento em que se admite que uma maioria política, num dado momento, pode fixar critérios de cientificidade, poderemos no futuro ter outra maioria política a fixar outros critérios e a querer impô-los.
E nós havemos de aplaudir isso?
Não deveremos antes concentrar-nos em que o trabalho científico possa obedecer às suas próprias regras (já que, por imperfeitas que sejam, não podem ser melhoradas por intervenção exterior) e deixar que, depois, mas só depois, a sociedade, a comunidade política, decida o que acha melhor para seu governo? É que a sociedade não tem de reger-se só por critérios científicos, terá de recorrer também a outros planos (o plano ético ou prudencial, por exemplo) - mas será muito perigoso admitir que seja a comunidade política a ajuizar em matéria científica, a intervir na disputa racional pela compreensão do mundo, ou até a fixar o que seja racionalidade.
É por isto que, contrariamente a outros, não fico nada empolgado com aquele projecto de resolução que anda por lá na Assembleia Parlamentar do Conselho da Europa. Acho que ele autoriza demasiados equívocos. E pode tornar-se, a prazo, um tiro no pé: quer dizer, fazer com que, como nos EUA, os fundamentalistas religiosos queiram usar o poder político para impôr o seu obscurantismo. Prezo muito os mecanismos políticos da democracia, mas prezo também muitíssimo o princípio de que nem tudo pode ser julgado nos parlamentos. Certas áreas de uma vida pública decente devem manter a sua autonomia e os órgãos de decisão política devem zelar apenas por essa autonomia, em vez de intervir directamente em questões de conteúdo. Julgo ser o caso da ciência.
(Outras postas em outros blogues também reflectem o mesmo projecto de resolução da Assembleia Parlamentar do Conselho da Europa, tais como Palmira F. da Silva no De Rerum Natura ou Rastos de Luz).
Eu sou completamente contrário ao criacionismo, quer como ideia julgada no plano científico (usa "esquemas" de argumentação e "factos" que me parecem completamente carentes de qualquer forma de racionalidade, tanto quanto esta nos é acessível e necessária à investigação científica), quer como ideia religiosa (é um dos produtos dos piores aspectos da religião, entre os quais a mania de que os humanos e o que existe ao cimo da Terra é o melhor que existe e pode existir no Universo e que o pobre do Deus teria certamente de ter obedecido a essa regra). Mas, e aqui vem o mas, vale a pena ler o tal texto apresentado na Assembleia Parlamentar do Conselho da Europa e fazer algumas perguntas. Tais como:
- será que compete mesmo a uma Assembleia Parlamentar fazer declarações solenes acerca da cientificidade de uma qualquer teoria?
- será que compete a uma assembleia política declarar quais são e quais não são os factos científicos num dado domínio?
- será que compete a um parlamento fazer proclamações acerca do que são e do que não são raciocínios científicos? do que é e do que não é rigor científico?
- será que compete a uma qualquer maioria política aprovar textos acerca do que é sabido e não é sabido numa dada disciplina científica?
Confesso que tudo isto me parece muito perturbador. Por este caminho, qualquer dia uma maioria política particularmente obtusa poderia desaprovar o heliocentrismo e considerar que o mundo gira à volta da Terra. Sim, porque, a partir do momento em que se admite que uma maioria política, num dado momento, pode fixar critérios de cientificidade, poderemos no futuro ter outra maioria política a fixar outros critérios e a querer impô-los.
E nós havemos de aplaudir isso?
Não deveremos antes concentrar-nos em que o trabalho científico possa obedecer às suas próprias regras (já que, por imperfeitas que sejam, não podem ser melhoradas por intervenção exterior) e deixar que, depois, mas só depois, a sociedade, a comunidade política, decida o que acha melhor para seu governo? É que a sociedade não tem de reger-se só por critérios científicos, terá de recorrer também a outros planos (o plano ético ou prudencial, por exemplo) - mas será muito perigoso admitir que seja a comunidade política a ajuizar em matéria científica, a intervir na disputa racional pela compreensão do mundo, ou até a fixar o que seja racionalidade.
É por isto que, contrariamente a outros, não fico nada empolgado com aquele projecto de resolução que anda por lá na Assembleia Parlamentar do Conselho da Europa. Acho que ele autoriza demasiados equívocos. E pode tornar-se, a prazo, um tiro no pé: quer dizer, fazer com que, como nos EUA, os fundamentalistas religiosos queiram usar o poder político para impôr o seu obscurantismo. Prezo muito os mecanismos políticos da democracia, mas prezo também muitíssimo o princípio de que nem tudo pode ser julgado nos parlamentos. Certas áreas de uma vida pública decente devem manter a sua autonomia e os órgãos de decisão política devem zelar apenas por essa autonomia, em vez de intervir directamente em questões de conteúdo. Julgo ser o caso da ciência.
(Outras postas em outros blogues também reflectem o mesmo projecto de resolução da Assembleia Parlamentar do Conselho da Europa, tais como Palmira F. da Silva no De Rerum Natura ou Rastos de Luz).