Gaspar falou. E disse, principalmente, que está tudo a correr muito bem, mas que está tudo a correr muito mal. O ajustamento está na linha do desenhado, a despesa pública baixou (pois, a cortar nos salários e pensões, sabemos), o desequilíbrio externo também (é uma maravilha não termos dinheiro para importar, é o que isso quer dizer), mas vamos precisar de qualquer coisa como uma punção extra de 3% do PIB. Os impostos vão aumentar brutalmente, o valor do trabalho vai continuar a baixar, o desemprego vai continuar a aumentar, mas Alá é grande e, embora quase mortos, estamos mais credíveis. Mortos, mas credíveis.
Quer isto dizer que Gaspar se limitou a confirmar a expectativa geral - negativa - acerca dos próximos passos? Não me parece. Não sou economista e nem sequer percebo exactamente o que querem dizer algumas das afirmações que Gaspar produziu, mas julgo que esta intervenção promete luta política em direcções relevantes. Gaspar prometeu mais equidade na distribuição do esforço: pagarão mais os que ganham mais, tanto pessoas como empresas. Vamos ver as contas, que o diabo está nos detalhes, mas esse elemento é importante. No que toca a diversificar a base dos castigados, o imposto sobre as transacções financeiras ainda está no plano das ideias gerais, mas é uma reivindicação de esquerda - e Gaspar diz que ainda não tem detalhes por estar à espera para ver como fará a França dos socialistas. Estes elementos mostram que o Tribunal Constitucional andou bem e deu um contributo importante para obrigar a repensar elementos básicos da receita (Passos lá teve de engolir as críticas disparatadas que fez ao TC). (Por outro lado, Gaspar na prática dá razão a Borges quanto à TSU, apenas com mais diplomacia do que Borges, o que também não é difícel.) Além disso, o ministro promete que vão lutar na frente europeia por uma cooperação reforçada para avançar na imposição das transacções financeiras, uma matéria em que realmente só faz sentido legislar em conjugação com outros países. (Já agora, apesar dos protestos por Passos Coelho faltar ao 5 de Outubro, o PM vai a um encontro dos "Amigos da Coesão", um espaço que Portugal tradicionalmente frequenta para tentar reforçar a margem negocial dos Estados-Membros que beneficiam dos fundos de coesão, espaço que temos de cultivar quando se está já a caminho da negociação do próximo orçamento comunitário plurianual.)
Embalado pelo sucesso da operação de troca de dívida que ocorreu hoje (uma grossa fatia da dívida que vencia em Setembro de 2013 foi trocada por dívida que vence apenas em 2015, ainda por cima com melhor juro, o que alarga a margem para respirar se tentarmos voltar aos mercados no próximo ano), Gaspar manteve a confiança no essencial da sua política, a qual tem estado a matar o doente com o remédio. Mas, não nos iludamos, introduziu variações políticas que dão ao governo algum fôlego para as negociações dos próximos tempos. Essas variações foram pensadas para afagar a opinião pública moderada mas sedenta de alguma equidade na distribuição do esforço. O economista Gaspar não mudou nada, mas o ministro Gaspar evidenciou uma capacidade de manobra que o governo parecia ter perdido nos últimos tempos. Isto pode prometer um debate do orçamento mais interessante - e, quem sabe, mais útil para o país do que se estava à espera.
(Espera-se, entretanto, que Passos Coelho aproveite alguma coisa com a releitura das suas homilias passadas, como esta ou esta.)