Ontem fui ao lançamento do mais recente livro do jornalista José Pedro Castanheira, “Jorge Sampaio – Uma Biografia” (primeiro tomo). Pelo que vi e já pude bisbilhotar no livro, não é “uma biografia”, mas sim “A” biografia. E, além disso, como bem sublinharam Rui Vilar e António Costa, apresentadores da obra na sessão de ontem, é, mais do que uma biografia de um homem, uma peça de história política de uma época crucial da história portuguesa contemporânea. Tinha pensado deixar esta leitura para as próximas férias, mas não sei se resisto até lá.
Entretanto, para me associar à homenagem que este livro também representa, e ocasiona, conto aqui um pequeno episódio das minhas andanças pelos bastidores da vida política portuguesa, que inclui a personagem Jorge Sampaio há um bom par de anos.
A coisa passa-se depois de Vitor Constâncio se ter demitido de SG do PS, em Outubro de 1988, abrindo a dolorosa questão da sucessão do líder. Constâncio tinha sido o primeiro líder pós-Soares, rodeado por gente com ideias frescas e uma nova abordagem ao papel dos socialistas no país e no mundo, e a sua demissão, prematura e com estrondo, constituíra um choque para toda aquela gente a tentar dar um fôlego diferente ao PS. Apesar das críticas (mais ou menos veladas) de Constâncio a Guterres (os “generais” do partido, criticados por não darem a cara, seriam, antes de mais, o “general Guterres”), havia na comunicação social e nos mentideros a convicção de que Guterres estava calhado para ser o próximo líder.
Alguma dessa agitação prospectiva em torno do nome de Guterres devia-se a um erro de apreciação quanto às “facturas” que a demissão de Constâncio tinha deixado para pagar. No seio do PS, muitos culpavam Guterres de conspiração para alcançar o topo e, portanto, de deslealdade, enquanto Sampaio era avaliado como tendo feito tudo o que podia para travar batalhas pelo partido. Obviamente, os meios diplomáticos em Lisboa estavam atentos à evolução de um partido que mais tarde ou mais cedo voltaria a ser governo.
Nessa altura eu era mais um jovem colaborador de Sampaio na área das relações internacionais, pela qual ele era responsável, como “Secretário Internacional”. Cabia-me, na distribuição de tarefas, uma área da política internacional que na altura era muito relevante e estava em grande ebulição, além de interessar muito a Sampaio – e na qual aquela direcção do PS tinha mudado muito a forma de estar que tinha sido a do “soarismo”: as relações Leste/Oeste e as questões da paz e do desarmamento. No desempenho dessas funções, uma das minhas tarefas consistia em alimentar o fluxo de informação com as embaixadas dos “países de Leste” na capital portuguesa. Essas relações estabeleciam-se, normalmente, com diplomatas acreditados. Contudo, no caso da União Soviética, com um aparelho mais sofisticado e diversificado, os meus contactos regulares eram com o “homem” da TASS (agência noticiosa soviética) em Lisboa, um georgiano culto e muitíssimo interessante, com quem conversava de muita coisa além da política imediata.
Ora, o nosso Igor quis, por aquela altura, almoçar comigo para confirmar as suas ideias acerca do que se iria passar no PS. Claro que ele julgava Guterres mais do que certo como próximo SG. Eu não tinha nenhuma informação privilegiada: tinha uma boa relação com Sampaio, mas não fazia parte, de forma nenhuma, do seu círculo restrito e, claro, ele nunca iria passar-me nenhuma informação reservada sobre o que se estava a desenrolar. Não tinha informação privilegiada mas conhecia o meio e era capaz de analisar a situação interna, pelo que lhe disse: Igor, estás equivocado, vai ser Sampaio.
Isso deu uma grande conversa, com Igor a tentar perceber os meus elementos de análise, mas desconfiado: afinal, eu era suspeito de simpatia pelo Secretário Internacional. Quando, depois, o homem da TASS viu a realidade confirmar a minha profecia, foi notório que ele me tinha “promovido” na sua “hierarquia” de contactos. Afinal, eu seria um fino analista dos bastidores socialistas! Essas “promoções”, no meio ritualizado das relações internacionais dessa altura e com aqueles interlocutores, eram dadas por sinais muito comezinhos, como a frequência dos convites para almoçar e os restaurantes escolhidos para o efeito. Neste caso, além disso, levou pouco depois a um episódio que me deixou sem nenhuma dúvida de que Igor era mesmo, além de jornalista, um espião a fazer o seu trabalho de estender a rede. A minha sorte era que eu estava bem documentado sobre as armadilhas com que os agentes da espionagem envolviam os seus contactos até tomarem conta deles. Mas essa história deixo para outra altura.
Relato um episódio marginal e sem importância alguma para a história do país. Mas serve-me de pretexto para expressar o meu respeito por um homem íntegro e brilhante, com o qual nem sempre estive de acordo, mas a quem, como cidadão, agradeço a verdade com que sempre se entregou a valores mais altos do que os seus interesses pessoais ou de grupo e a coragem de pensar e agir em horizontes mais vastos do que o imediato.