Receber esmola não é um direito. A relação esmolar é uma relação arbitrária, sem critério público (embora possa ter um critério moral, mas a moral não é para impor universalmente), onde quem dá detém todo o poder sobre a relação, onde quem recebe só pode estar infinita e reverentemente grato a quem dá.
Dar esmola é gratuito, é uma graça, não tem lei. Isso, nos melhores casos, porque também há quem só dê a quem se dobre a certas conveniências ideológicas, a quem se incline ao credo e aos sinais da tribo, às vezes apenas a quem se incline à mão que dá. Mas nem vou por aí. Nos melhores casos, a relação esmolar é livre para o benfeitor - mas não para o recipiente. Aí está toda a diferença entre a relação esmolar e as relações que resultam dos direitos sociais numa comunidade política civilizada.
É, por isso, abominável que se escreva isto: «Há décadas que, por opções ideológicas e populismo eleitoral, os poderes públicos nacionalizam as esmolas. Metem-se entre pobres e benfeitores, tributando os segundos para ter o mérito de ajudar os primeiros.» Quando João César das Neves fala em "nacionalizar as esmolas", diz claramente ao que vem: o seu projecto é o de uma sociedade fundada na relação esmolar, no arbítrio do benfeitor, onde os direitos humanos deixaram de ser assunto para a comunidade e passaram a ser uma benção de pequenos deuses caseiros. Uma espécie de feudalismo em ponto pequeno, uma espécie de jardim infantil para os pobres e todos os que precisem da sua parte de solidariedade num dado momento. O seu projecto parece ser o de esquecer os direitos e trocá-los pela esmola liberal. Diz ele: «Agora os poderes públicos têm de encontrar o seu lugar subsidiário numa sociedade equilibrada.»
Quando a relação social no seio de uma comunidade política com regras públicas for subsidiária da esmola, estamos de novo na selva. Ou antes: estaremos ainda mais na selva.