ARGUMENTUM ORNITHOLOGICUM
Fecho os olhos e vejo um bando de pássaros. A visão dura um segundo ou talvez menos; não sei quantos pássaros vi. Era definido ou indefinido o seu número? O problema envolve o da existência de Deus. Se Deus existe, o número é definido, porque Deus sabe quantos pássaros vi. Se Deus não existe, o número é indefinido, porque ninguém pode fazer a conta. Nesse caso, vi menos de dez pássaros (digamos) e mais de um, mas não vi nove, oito, sete, seis, cinco, quatro, três ou dois pássaros. Vi um número entre dez e um, que não é nove, oito, sete, seis, cinco, etc. Esse número inteiro é inconcebível; ergo, Deus existe.
(Jorge Luís Borges, O Fazedor)
Isto é um argumento?
Se é um argumento, será sobre a existência de Deus?
(Umas horas passadas, deixo umas reflexões sobre este texto borgiano, com base numa nota que deixei noutro sítio.)
O argumento parece escrito a olhar para o argumento ontológico de Santo Anselmo para provar a existência de Deus. Digamos, em passo rápido, que o argumento ontológico tem basicamente a seguinte estrutura: concebemos Deus como a entidade mais perfeita; é mais perfeito existir do que não existir; portanto, essa entidade Deus tem a propriedade de existir; logo, Deus existe. O “argumento” de Borges copiaria o de Santo Anselmo (e outros) em pretender que Deus é necessário para garantir a existência de coisas que sabemos que têm de existir. Em Borges, um número definido de pássaros que estaria entre 2 e 9.
Isto não quer dizer que o “argumentum ornithologicum” seja uma variante do argumento de Santo Anselmo, nem para escorar o antigo argumento com uma variação confirmatória, nem para o apoucar com uma variação paródica. Embora não querendo negar que literatura e filosofia possam confluir, possam entrar nas mais criativas mestiçagens, não me parece que aqui seja verdadeiramente o caso. Ou talvez seja, mas numa forma fraca: Borges alimenta o seu texto de um argumento importante na história da filosofia. Mas, a meu ver, não está a produzir nenhuma variante da prova da existência de Deus que se diz ter começado com Santo Anselmo. Aliás, se o texto pretendesse ser tal coisa, mal iria se teimasse nele sem responder às críticas que o assolam (a principal sendo a que sustenta que a existência não é um predicado, mas uma condição para predicar, o que destrói a lógica do argumento original, apesar de repetido por filósofos como Descartes).
Entretanto, julgo que é errado tentar ler o texto de Borges como um argumento acerca da existência de Deus. Explico-me de seguida.
Desde logo, o argumento não parte de uma visão de um bando de pássaros. Começa, lembremos, assim: “Fecho os olhos e vejo”. Não começa “vejo e fecho os olhos”. Trata-se, pois, de imaginação. Não se trata de algo que aconteceu e eu não captei de maneira definida. Não está em causa, pois, a existência de pássaros em certa quantidade. Está em causa um conteúdo mental.
Não se tratará, contudo, de uma qualquer imaginação livre: trata-se de uma questão de número. Estamos, provavelmente, próximos de uma questão de filosofia da matemática, uma questão sobre a existência dos objectos matemáticos (e aparentados). Ora, cabe lembrar que os objectos matemáticos não nos deixam grande espaço para uma imaginação solta: os objectos matemáticos são regrados, de forma muito apertada, por todo um edifício conceptual que os coloca dentro de baias muito estritas. Há quem considere que o facto de os objectos matemáticos não serem livremente manipuláveis, e de podermos fazer descobertas matemáticas no universo definido pelas axiomas e teoremas já demonstrados, e de claramente estarem por descobrir as respostas a questões formuladas acerca do mundo dos objectos matemáticos, há quem considere, dizia eu, que isso mostra que existe uma realidade matemática, diferente da realidade física, mas mesmo assim com uma certa autonomia relativamente a nós (veja-se, por exemplo, a teoria dos três mundos, de Popper). Assim sendo, se alguma coisa está em causa no argumento, não são os pássaros: podiam ser bolinhos de bacalhau; o que interessa é o número, que me parece representar aqui um certo tipo de objecto conceptual (regrado). O número podia ser de pássaros ou de bolinhos de bacalhau.
Se levarmos o “argumentum ornithologicum” para este lado, sem Deus não existiriam questões capazes de ter respostas que nós não conhecemos. Consideremos a “conjectura de Goldbach”, segundo a qual todo o número par maior do que 2 é a soma de dois números primos. Não se sabe se isso é assim, nunca se conseguiu demonstrar que a conjectura esteja certa ou errada. Mas a conjectura está certa ou errada, embora nós não o saibamos (pelo menos por enquanto). Se levarmos o “argumentum ornithologicum” a sério, como argumento, Borges estaria a defender que não há questões em aberto, como esta que acabei de mencionar como exemplo. Acho difícil de defender que Borges estivesse a querer dizer isso.
Um dos nós do “argumento” reza assim: “Vi um número entre dez e um, que não é nove, oito, sete, seis, cinco, etc. Esse número inteiro é inconcebível”. Isto parece querer dizer que está a discutir (a negar) a existência de um número menor que dez e maior que um, que não é nenhum dos números de 2 a 9. Suponho que aqui está a chave do texto: isto parece um argumento porque faz uma confusão entre “ser” e “saber”. Seria muito simples dizer: “Vi um número entre dez e um, mas não sei se é nove, oito, sete, seis, cinco, etc.”. Aqui entronca a minha proposta de interpretação do texto de Borges: é um texto acerca de como pode ser complicado confundir questões de existência com questões de conhecimento. É um aviso contra a mistura de ontologia com epistemologia.
Acho que um texto sobre a sinuosa confusão entre ontologia e epistemologia faria todo o sentido no quadro dos impulsos fundamentais presentes na obra do grande Borges.