Muitas pessoas querem que alguém na União Europeia faça qualquer coisa para não continuar este disparate de deixar alastrar a crise e a pobreza, só porque há uns tantos que julgam que a crise e a pobreza são marcas de pecado, logo devem ser expiadas. E porque esses mesmos tantos esperam ganhar, algum dinheiro e eleições, com a crise e a pobreza dos outros.
Eu estou entre esses que querem que alguém faça alguma coisa para mudar o rumo.
O primeiro-ministro britânico, mais os primeiros-ministros da Holanda, Itália, Estónia, Letónia, Finlândia, Irlanda, República Checa, Eslováquia, Espanha, Suécia e Polónia, escreveram uma carta a Herman van Rompuy, Presidente do Conselho Europeu, e a Durão Barroso, Presidente da Comissão Europeia, clamando por um plano para o crescimento. Está aqui a carta.
Entre as pessoas que, justamente, querem que se faça alguma coisa pelo crescimento, houve em alguns casos uma certa indignação por Passos Coelho não se ter associado à iniciativa.
Acho que há nessa indignação um bom ponto: quem não tenha percebido que a solução para a nossa crise não é possível sem uma solução para a crise europeia, não percebeu patavina deste mundo. O governo do passismo não quer perceber isso por uma razão muito simples: derrubou o governo de Sócrates fazendo de conta que isso não era verdade, fez uma campanha eleitoral demagógica fazendo de conta que não sabia disso. Custa-lhe, pois, agora, reconhecer o nó górdio da sua campanha de assalto ao pote, que foi uma campanha de ilusionista: esconder o jardim zoológico todo, entretendo o eleitorado a olhar para um unicórnio de papel.
Contudo, há dois aspectos a sublinhar quando olhamos para a carta de Cameron e associados.
Primeiro, embora seja interessante constatar que começa talvez a haver mais do que uma direita europeia quanto à forma de pegar a crise, deve notar-se que estão no grupo dos subscritores alguns dos Estados-Membros onde é mais forte o "castigacionismo", a inclinação para castigar "o Sul" pelos nossos pecados.
Segundo, poucos parecem ser os que se lembram de interpretar esta carta à luz dos princípios permanentes da diplomacia europeia dos britânicos. O Reino Unido tem várias tácticas diplomáticas permanentes na UE. Uma delas é que negoceia sempre até ao fim, obtendo o mais que pode da negociação, mesmo que acabe por ficar de fora do acordo final. Outra é que continua sempre a negociar, mesmo depois de ter ficado de fora da solução, para continuamente aproximar qualquer resultado das suas pretensões. Qualquer uma destas tácticas já tinha sido evidenciada na negociação deste tratado tipo-europeu-mas-entre-países-fora-das-instituições (o "compacto fiscal"). Esta carta, agora, exibe outra táctica: o RU nunca fica muito tempo fora de jogo, arranja sempre modo de voltar ao campo da derrota com metade da ex-equipa adversária integrada nas suas hostes, apresentando-se a jogo como campeã de um campeonato por si inventado.
É este último dispositivo que acaba de ser espoletado com esta carta: de repente até algumas almas da esquerda europeia viram os olhos esperançosos para a iniciativa de Cameron. Acompanhado como está, já o disse, por algumas das pátrias dos castigadores.
Os britânicos são uns ases. Confesso que tenho alguma saudade de lidar com a diplomacia deles. Mas sempre me vou divertindo a ver, ao longe, a máquina a funcionar.