1.2.12

reflexões em voz baixa.


1. O PSD, quando estava na oposição, pretendia que a crise era basicamente portuguesa, a crise internacional não explicava as nossas dificuldades e que estas se deviam principalmente à má governação doméstica; desdenhava das tentativas do governo Sócrates para conseguir um chapéu de chuva europeu para as dificuldades dos aflitos, boicotando cá aquilo que o governo conseguia em Bruxelas. Com base nesse diagnóstico, o PSD prometia que não pediria mais sacrifícios às pessoas, porque tudo estava na malvadez do mafarrico. Como corolário desse diagnóstico, dessa promessa e dessa mitologia, o PSD deitou a estabilidade política para o lixo, espoletando a aceleração do ataque dos mercados à nossa dívida soberana em troca de um acesso fácil e previsível ao poder: quem não desejava intimamente que bastasse queimar a besta para ser feliz?
2. Agora, o governo do PSD desmente todas as promessas que tinha feito (exceptuando a parte programática de entregar a carne do lombo que ainda existe, que isso cumpre com esmero). Para isso faz malabarismos com os números, desculpando-se com "desvios colossais" que afinal foram inventados. E já descobriu que a crise internacional afinal existe, que sem solução europeia nenhum país se safa (nem Portugal, portanto), e que o Merkozy impõe soluções que, embora não funcionem, não podem ser desafiadas de peito aberto na praça pública, porque isso atrairia as atenções dos especuladores sobre nós. Mas, consoante os dias, o programa da troika ora foi uma herança maldita, ora é afinal uma espécie de estudo prévio para o programa do PSD (declarações que ouvi ontem na TV, com PPC a honrar-se da convergência entre ambos os documentos). [cf. adenda]
3. Já a esquerda da esquerda, que andou anos a fio a bradar contra a Europa, de repente quer tudo da Europa, percebe que só somos alguém neste mundo globalizado se não estivermos sozinhos, e tem imensas opiniões sensatas acerca dos benefícios de uma maior e melhor coordenação europeia. Mas quer mais Europa sem perda de soberania: caridade, portanto, em que os outros dão o que nós queremos mas nós continuamos a fazer como bem entendemos, sem dar cavaco a ninguém. Quer dizer: pensa a relação de Portugal com a UE como Jardim pensa a relação da Madeira com a República. Ao mesmo tempo, na mesma esquerda da esquerda, há quem tenha ideias magníficas acerca das lições a tirar da má experiência do euro: mesmo os economistas mais heterodoxos caem na esparrela dos ortodoxos, que consiste em pensar a economia fora da sociedade e fora da política, o que os leva a considerar com leviandade a saída do euro, sem pensar que isso nos atiraria ainda mais para a periferia da Europa, além de poder engrossar a tendência para a desagregação política do continente, situação em que passaríamos a valer tanto como a jangada de pedra. Além, claro, de não quererem explicar a ninguém o que se passaria se deixássemos a moeda única nestas condições.
4. O PS está a ter dificuldade em habituar-se à mudança dos tempos. O governo Sócrates tentou evitar a ajuda externa, jogando numa evolução da cena europeia que nos fosse mais favorável - mas consciente de que não conseguiria apoio nenhum com uma estratégia de confronto com os parceiros e com os credores. Essa jogada falhou naquele momento, principalmente porque a coligação negativa queria, antes de qualquer outra coisa, correr com Sócrates, o que conseguiu: atirando o país para uma crise política que nos assinalou aos mercados como o próximo cordeiro a comer. Mas a estratégia de evitar o confronto com os parceiros e com os credores continua a ser acertada - e nisso PPC tem razão. Consciente disso - e bem - a actual direcção do PS quer evitar ao país fazer o mesmo tipo de oposição irresponsável que fizeram PSD, CDS, PCP e BE. Isso traduz-se na moderação de Seguro, e Seguro tem nisso alguma razão. Só que os tempos mudaram: é hoje mais claro, para toda a gente (incluindo a Alemanha) que o caminho da austeridade não vai resultar, que precisamos inventar outra política - e que a desagregação social provocada por esta agressão às pessoas é insustentável. Assim sendo, as oposições socialistas em toda a Europa têm de traçar novos caminhos, realistas (que tenham em conta o ambiente internacional) mas alternativos (que não deixem alienar a base popular da democracia, sem a qual corremos sérios riscos de ruptura de regime). Ora, para fazer face a esses novos riscos e desafios, a moderação não basta: é preciso reinventar a política. E, quanto a isso, estamos pouco excitados e o caminho é incerto.
5. A oposição a Seguro dentro do PS parece tão pouco certa do que pensar acerca disto como a própria direcção do Partido. Muitos tiros de pólvora seca, que alimentam a fragilidade de Seguro mas não acrescentam nada a uma alternativa credível. Não espanta: basta olhar para os outros partidos europeus da mesma corrente para verificar que está tudo à nora, sem saber muito bem como enfrentar esta situação. Tal como o país não pagará a Seguro para fazer oposição sem alternativas credíveis, os socialistas não pagarão à guerrilha interna contra Seguro a mera insistência em dizer mal, a menos que comecem a surgir ideias para fazer diferente. E melhor, já agora.

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Adenda. Segundo a Lusa, PPC considerou que os sociais-democratas têm um "grau de identificação importante" com o programa acordado com a 'troika' e querem cumpri-lo porque acreditam nele. Cita PPC como tendo declarado, durante uma sessão com militantes do PSD sobre a revisão do programa do partido: "É curioso que o programa eleitoral que nós apresentámos no ano passado e aquilo que é o nosso Programa do Governo não têm uma dissintonia muito grande com aquilo que veio a ser o memorando de entendimento celebrado entre Portugal, a União Europeia e o Fundo Monetário Internacional". E ainda que o diagnóstico da situação do país feito pelo PSD "não estava muito desviado da observação atenta especializada que o Banco Central Europeu, a Comissão Europeia e o Fundo Monetário Internacional tinham". Segundo o presidente do PSD, por esse motivo, "executar esse programa de entendimento não resulta assim de uma espécie de obrigação pesada que se cumpre apenas para se ter a noção de dever cumprido".