1.11.07

ARGUMENTUM ORNITHOLOGICUM

Ron Mueck, Angel (1997)


Fecho os olhos e vejo um bando de pássaros. A visão dura um segundo ou talvez menos; não sei quantos pássaros vi. Era definido ou indefinido o seu número? O problema envolve o da existência de Deus. Se Deus existe, o número é definido, porque Deus sabe quantos pássaros vi. Se Deus não existe, o número é indefinido, porque ninguém pode fazer a conta. Nesse caso, vi menos de dez pássaros (digamos) e mais de um, mas não vi nove, oito, sete, seis, cinco, quatro, três ou dois pássaros. Vi um número entre dez e um, que não é nove, oito, sete, seis, cinco, etc. Esse número inteiro é inconcebível; ergo, Deus existe. (Jorge Luís Borges)



Este texto de J.L. Borges provocou uma ocorrência curiosa. Enviei-o para um grupo de discussão pedindo que me enviassem breves comentários filosóficos ao mesmo, que, dizia eu, podiam ser «quer sobre a forma, quer sobre a "tese" em causa, quer sobre o raciocínio lógico a que se apela, quer mesmo sobre a possibilidade de um tal texto ter uma tese».


Recebi a seguinte resposta, de "Jocax": «Olá Porfirio! Desculpa, achei o argumento ( transcrito no fim da mensagem ) totalmente falacioso , para não dizer ridículo mesmo! :-) O fato de vc não lembrar ou não saber quantos pássaros imaginou não significa que existiu um número de pássaros bem definido pois alguns deles, como imagens, poderiam estar incompletos, como uma imagem borrada e, assim, não se poderia dizer se era um pássaro ou meio pássaro. ALÉM DISSO, vc se lembra quantas crianças tinha na sala de aula do seu primeiro ano de primário no dia 12/11/1960 ? Alguém neste mundo vai lembrar disso? E se os documentos sobre isso foram queimados naquele incêndio da escola? Isso prova alguma coisa sobre Deus? Não tem nada a ver! Embora o número de alunos fosse, diferentemente do exemplo dos pássaros, um número bem definido, ninguem vai lembrar! Vc precisa ler com cuidado o Link que vou te mandar Ok ? Leia (segue um link). Jocax.»


Manifestamente, por vezes não gosto de ser levado demasiado a sério. Respondi: «Obrigado, Jocax. O link que sugere eu vou re-encaminhar para o Jorge Luis Borges, o autor do "argumento". Trata-se de um texto LITERÁRIO de Borges, não de um texto FILOSÓFICO. Borges fez muitas ironias desse género, que podem ser apreciadas filosoficamente, mas não como se pretendessem demonstrar alguma coisa. Eu não estou em nenhuma movimentação para DEMONSTRAR a existência ou não existência de Deus: por razões filosóficas, esse tema não me interessa. O que me interessa, neste ponto específico, é apenas a forma de proceder do grande Borges. Obrigado por ter dado atenção à minha mensagem. Um abraço. Porfírio»


Aqui fica a historinha. Voltem ao início e gozem o texto de Borges. E a suprema ironia do falso cego. (Tal como se pode gozar a pretensa lucidez de outros verdadeiros cegos.)


(Texto publicado inicialmente no Turing Machine, mais precisamente a 14/04/04, aqui.)