3.1.12

a armadilha.


Dois políticos-intelectuais de peso no Labour britânico, Ben Jackson e Gregg McClymont, publicaram no fim de Dezembro, com a chancela do think-tank dos trabalhistas “moderados” de Peter Mendelson, o Policy Network, um documento que perspectiva o caminho a seguir pelo Labour para regressar ao poder, à luz da história político-eleitoral do século XX. De seu título “Cameron’s Trap: Lessons for Labour from the 1930s and 1980s” (pdf aqui), está já a provocar alguma polémica nas fileiras dos trabalhistas. Vamos dar aqui um breve e livre resumo das suas 20 e tal páginas, sem nos entregarmos a grandes comentários acerca da sua pertinência para ilustrar a situação portuguesa.

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Anteriores governos liderados pelos conservadores ganharam eleições mesmo depois de fazerem cortes profundos nos serviços públicos e de aplicarem políticas cúmplices com o desemprego de massas. Ou seja, conseguiram fazer isso e passar sem uma penalização eleitoral. Como o conseguiram?
Em primeiro lugar, formando uma coligação de vencedores em termos sociais (proprietários, financeiros, mas também trabalhadores “livres” da influência dos sindicatos), manobrando o sistema fiscal para apertar ainda mais os já mais apertados (por exemplo, cortando nos impostos directos e compensando com o aumento dos impostos indirectos, onde pobre e rico são tratados da mesma maneira), desprezando os perdedores (por exemplo, a concentração de desemprego massivo em zonas eleitorais trabalhistas, com recusa de fazer algo contra isso); e criando uma percepção ideológica da economia (com distorções do tipo “o desemprego elevado é uma inevitabilidade”).
Em segundo lugar, em qualquer dos casos, o sucesso eleitoral dos Conservadores passou por uma retórica política centrada nos “cortes”, na redução da despesa pública, no emagrecimento do serviço público, de modo a redefinir o conjunto do debate político nos seus próprios termos. Pode resumir-se este ponto dizendo que, para os conservadores, os cortes são ideológicos – no sentido em que se concebe que um Estado mais pequeno é sempre preferível, tanto em termos económicos como em termos morais –, mas, além disso, os cortes são políticos: no sentido em que servem os interesses eleitorais partidários dos Conservadores. Colocar os “cortes” como um objectivo nacional legitima a redução do serviço público, legitima uma agenda ideológica.

Os Conservadores recorrem actualmente, de novo, ao elemento austeritário deste tipo de estratégia, já que não têm agora disponíveis elementos centrais das suas experiências governativas anteriores. Do ponto de vista da dinâmica económica, os anteriores períodos de governação conservadora apoiaram-se em fenómenos que não se repetirão desta vez (boom na construção, nas finanças, ou no consumo) e a alternativa exportadora tão pouco está facilitada no actual contexto. Do ponto de vista da dinâmica social, o espantalho dos “sindicatos vermelhos”, usado para uma estratégia de confrontação social, não vai funcionar. É, aliás, por isso, que os Conservadores apostam em cavar uma outra divisão social, que possam manipular eleitoralmente: desta vez, entre trabalhadores do sector público e trabalhadores do sector privado.
Nestes termos, a política de austeridade é uma escolha partidária, uma estratégia para colocar o debate político em termos eleitoralmente favoráveis aos Conservadores.
Podemos concordar com a necessidade de uma consolidação das contas públicas a médio prazo, mas isso não implica concordar com a actual política em termos de velocidade e dimensão da redução da despesa pública. Fazer as coisas a esta escala brutal é uma estratégia dos Conservadores para servir os seus objectivos políticos, em particular atirar as culpas para cima dos precedentes governos trabalhistas. As realidades económicas pediriam uma abordagem mais flexível, mas isso estragaria o argumento político dos Conservadores: se os Conservadores aceitassem que é preciso gastar dinheiro para não deixar a economia regredir, teriam de abandonar o argumento contra os Trabalhistas, a acusação de que são despesistas, porque teriam de reconhecer que os Trabalhistas gastaram porque a economia assim o pedia.


A receita, provavelmente, não vai funcionar: nesse caso, os Conservadores vão continuar a pregar a austeridade como inevitável, ainda e mais, porque ainda não deu os resultados esperados. Mas a estratégia política dos Conservadores também inclui o cenário em que a receita da austeridade funcione. Nesse caso, a brutal redução da despesa em serviços públicos será tomada como um facto consumado – quer dizer, não vão aproveitar a retoma para recuperar o nível dos serviços públicos – e vão aproveitar o regresso da folga orçamental para baixar impostos. Se, nessa altura, os Trabalhistas apresentarem como programa eleitoral recuperar o nível dos serviços públicos, serão acusados pelos Conservadores de quererem voltar a aumentar os impostos. Quer dizer: qualquer programa de reforço (ou mera recuperação) do serviço público será apresentado como despesista – com a ameaça de que, indo por aí, será necessário voltar à austeridade. Esta estratégia de pescadinha de rabo na boca serve o objectivo ideológico de “cortar no Estado” e de dificultar o objectivo político de usar os serviços públicos como alavanca de mais justiça social e mais desenvolvimento económico. E serve o objectivo político de atacar os Trabalhistas, fazendo de conta que eles é que criaram a crise, que a crise é resultado das políticas trabalhistas. Esta estratégia política, estritamente partidária, não se foca nos problemas do país, na economia real: nível de vida, emprego, produção, geração de riqueza – mas apenas na retórica em torno da despesa pública e seus putativos culpados, os Trabalhistas. A política económica, assim, é vendida como se fosse uma questão simples de escolha entre partidos políticos: “não há alternativa” é a palavra de ordem que visa esconder a complexidade da crise actual, a importância da recessão mundial, o colapso do sistema financeiro – e colocar esse simplismo ao serviço de uma estratégia partidária e ideológica.

Em termos políticos, a retórica austeritária visa captar apoiantes que vão ao engano: mesmo pessoas que só têm a perder com essa política, podem apoiá-la se forem convencidas de que ela é um “imperativo nacional”. Por exemplo, muitos são convencidos de que a protecção no desemprego é uma forma de gastar dinheiro com quem não o merece, uma despesa “anti-patriótica” porque vai para “grupos restritos” (“só está desempregado quem quer, quem pede salários demasiado altos, quem quer viver à custa dos outros”) em vez de ir para o interesse de todos. A protecção aos mais pobres também pode ser apresentada como “subsídio aos que não sabem viver dentro do seu orçamento”, uma variante privada do argumento do “despesismo”.
Este é o tipo de estratégia política seguida pelos Conservadores ao longo do século XX – e ela é a inspiração de Cameron neste momento e para as próximas eleições. Trata-se, portanto, de pensar como lhe responder. De acordo com os autores, o Labour tem de evitar esta armadilha. Para isso, tem de se focar na realidade de uma economia com mau desempenho e nos rendimentos minguados das pessoas – e no papel que um “Estado activista” tem de jogar para contrariar essa realidade.

O que os Conservadores querem é que os Trabalhistas se limitem a defender os serviços públicos, o que será apresentado como uma tendência para desequilibrar a despesa pública, ou mesmo como um interesse preponderante pelos interesses dos trabalhadores do sector público. Os Trabalhistas devem ter uma agenda mais vasta, virada para mais crescimento e para uma melhoria dos níveis de vida. Os Trabalhistas devem falar para todos aqueles que estão a ser espremidos pela política de austeridade. Isto quer dizer que os Trabalhistas devem ter uma estratégia clara para o sector privado, incluindo uma política industrial, com o objectivo de criar mais emprego, emprego sustentável, e aumentar o nível de vida. Para isso, os Trabalhistas devem ter uma concepção de um Estado activista. O debate eleitoral terá de centrar-se na questão “quem tem melhores ideias para promover o crescimento”, e não na questão envenenada “quem vai melhor reduzir a despesa pública”.
Os Conservadores estão a usar a política de austeridade para impor mecanismos fiscais mais regressivos (em que, proporcionalmente, pagam mais os que têm menos); os Trabalhistas precisam de avançar com mecanismos mais progressivos, e ao mesmo tempo desenvolver políticas sociais que reduzam a incerteza económica por via da partilha do risco (o que não tem sempre de passar por aumentos da despesa).

As sondagens mostram que uma parte importante do eleitorado continua a culpar o anterior governo Trabalhista pelas políticas deste governo, o que quer dizer que a agenda ideológica está a ser competentemente implementada. Isso quer dizer que os Trabalhistas têm de concentrar-se naquilo que verdadeiramente importa: uma agenda para o crescimento e o emprego. Os Trabalhistas têm de mostrar que têm melhores respostas para essa questão: porque essa questão é que atrai o interesse das pessoas, que não estão propriamente entusiasmadas em baixar o défice como objectivo em si mesmo.
E isso tem de ser feito sem cair na manobra de virar os trabalhadores do privado contra os trabalhadores do público, que visa criar a ideia de que os Trabalhistas só estão preocupados com alguns. É por isso que certas greves no sector público prejudicam mais a oposição do que o governo.
São estas armadilhas que os Trabalhistas têm de desmontar para reconstruir uma alternativa global que apele ao conjunto da nação.