15.5.10

um mundo quase vazio (a Ana Paula e o Herbert Simon)


A Ana Paula Sena, do Catharsis, escreve:
«Supondo que tudo o que fazemos, e ainda mais, que toda a nossa acção, na medida em que possui uma intenção, tem efeitos na totalidade do Universo... »

O post que assim começa não tem necessariamente algo a ver com o que vou dizer a seguir. Ana Paula, não estou a fazer nenhum ataque enviesado ao que lá se escreve, mas queria só comentar aquela frase - porque ela contém um tópico muito repetido das perspectivas holistas.

Vou apoiar-me numa ideia de Herbert Simon, uma das mentes mais multifacetadas do século XX.

Herbert Simon (A Razão nas Coisas Humanas, 1983; 1989 para a edição na Gradiva), no quadro geral das suas teses acerca da racionalidade limitada (a racionalidade humana é fortemente cerceada pela situação e pelos poderes computacionais dos agentes), procura uma explicação para o facto de, mesmo assim, nos desenvencilharmos de forma razoavelmente eficiente da maioria das circunstâncias correntes da nossa vida. Porque é que, apesar de ignorarmos inúmeros aspectos que nos poderiam afectar em consequência das nossas acções, os nossos comportamentos ainda assim servem razoavelmente a nossa sobrevivência e os nossos propósitos? Pelo menos em parte isso deve-se ao facto de certas carências que são constantes nos organismos (como a respiração) estarem a cargo de mecanismos fisiológicos que dispensam a nossa atenção - bem como ao facto de dispormos de mecanismos (como as emoções) que garantem aos problemas mais prementes a prioridade na sua resolução.

Simon aponta, além disso, uma razão geral para que seja possível vivermos, com certo êxito, segundo este modelo de racionalidade limitada, que nos permite compartimentar a nossas decisões: "Vivemos no que se poderia chamar um mundo quase vazio - um mundo no qual há milhões de variáveis que em princípio poderiam afectar cada uma das outras, mas que não o fazem na maior parte das vezes". Esta concepção do "mundo quase vazio" é largamente coincidente com a ideia de Alfred North Whitehead, segundo o qual "a ampla independência causal de ocasiões contemporâneas é que preserva a margem de manobra no seio do Universo".

Qual é o interesse disto, de "um mundo quase vazio", "a ampla independência causal de ocasiões contemporâneas"?

Como eu vejo as coisas, o seguinte.

Num mundo determinista "denso" (por oposição a um "mundo quase vazio") deveria ser fácil para um agente "mudar o mundo": qualquer comportamento teria inúmeras consequências, identificáveis nas primeiras ondas de repercussão, com efeitos multiplicadores em inúmeras linhas causais atravessando o espaço e o tempo em todas as direcções. Na realidade, pelo contrário, inúmeros acontecimentos particulares são absorvidos pelo fluxo dos acontecimentos e não chegam a ter qualquer efeito, perdem-se, diluem-se nas interacções. Mudar o mundo é difícil e exige, em geral, doses massivas de insistência, mobilização, concertação, sustentação e direccionamento. Poucos acontecimentos particulares, ainda menos de um agente individual, chegam a estar na crista da onda e a tornar-se relevantes.

Ana Paula, não sei se o argumento colhe. Mas parece-me realista. E, o que é mais, para mim é um forte argumento anti-determinista (como expliquei neste texto).