7.5.10

Shakespeare, A Tempestade, Sam Mendes : Madrid

Integrado no Bridge Project, dirigido por Sam Mendes, que junta esforços dos dois lados do Atlântico (a Brooklyn Academy of Arts, de Nova York, e o Old Vic, de Londres) para fazer teatro, estão em Madrid duas peças de Shakespeare. Fomos ver A Tempestade, no Teatro Español, ali na Praça de Santa Ana.


Como em qualquer grande texto que recorre ao fantástico (nós sabemos bem que não há um espírito Ariel ao serviço de exilado político nenhum), o problema é saber se o irreal ajuda a trama do real ou se a desorganiza até perder a credibilidade. Desse ponto de vista, não gosto deste texto de Shakespeare. Talvez isso pudesse ter sido resolvido dando alguma profundidade psicológica adicional às personagens, mas não creio que isso tenha acontecido. O ponto de esteio de uma verosimilhança desejável seria o problema. O problema n'A Tempestade é a traição e a lealdade como forças que estão sempre em jogo, seja como presença, seja como possibilidade. E o desejo sempre presente de podermos remendar alguma coisa no nosso passado ou no dos nossos familiares e amigos. Mesmo assim, esta é uma daquelas peças de Shakespeare que não chegam a convencer-me.

A história podia ser complicada, mas acaba por ser simples. Próspero, o legítimo duque de Milão, que foi traiçoeiramente derrubado e substituído por seu irmão António, foi  propositadamente enviado para o naufrágio no mar, mas escapou, encontrando-se há doze anos numa ilha deserta. Aí, com sua filha Miranda, escravizam o nativo Caliban e o espírito Ariel. Próspero, que lê muito para refinar a sua magia, manda Ariel criar uma tempestade, tempestade que faz naufragar o navio da esquadra do rei de Nápoles em que viajam os inimigos de Próspero, que são todos arrastados até à ilha onde o destino os confrontará. Depois, é tudo simples. Ferdinando, filho do rei de Nápoles, cumpre o plano de Próspero ao apaixonar-se por Miranda (e esta por ele). António convence Sebastião a aplicar ao seu irmão, rei de Nápoles, a mesma receita de traição que ele executara doze anos antes. Trinculo e Stephano, náufragos de baixo estrato, aliciam Caliban e alinham com este para tentar matar Próspero. Mas todos os planos falham pela magia de Próspero, corporizada em Ariel. Afinal, Próspero dá uns ralhetes a todos os prevaricadores - mas perdoa toda a gente e prepara-se para voltar a Milão como grão-duque. Torço sempre um pouco o nariz a soluções tão completas para todos os imbróglios...

Mas, enfim, Shakespeare é Shakespeare. Gostei do conjunto. Contudo, várias interpretações individuais neste espectáculo deixaram-me dúvidas.


Acima, a partir da esquerda: Edward Bennett (como Ferdinando),  Stephen Dillane (Próspero), Juliet Rylance (Miranda). Próspero apresenta-se com um ar solene que, se funciona bem no papel de legítimo duque de Milão, e talvez servisse também para o ar misterioso de mágico, soa um tanto a falso noutras situações: trata o casamento da filha com o mesmo "profissionalismo" e defende-se dos planos para o assassinar com o mesmo desprendimento. Pareceu-nos pose "de Estado" a mais, como se ele, seguro de que tudo correria segundo o seu plano, não tivesse já réstia de ansiedade quanto à respectiva concretização. Mas, então, se se sente como um deus, isso encaixa mal no conjunto da trama. Demasiado solene, para meu gosto, a figura central. Parece que o actor se deixou dominar pela importância de ser duque de Milão.



O espírito Ariel, o instrumento do todo poderoso mago-duque, aparece como um andrógino. Enfim, um espírito é um espírito, não devemos ser obrigados a compreendê-lo bem. Ainda por cimo, ter já vivido enclausurado numa árvore, deve deixar sequelas. Mas é uma figura um pouco inútil: se Próspero é tão poderoso, para que precisa de um moço de recados? Uma incongruência que o actor não contribui para resolver.


Ron Cephas Jones, como Calibán (à direita), Anthony O'Donell, como Trínculo (ao centro) e Thomas Sadoski, como Stephano, compõem o conjunto de actores/personagens que mais conseguem mostrar que estão a interagir num grupo. Misturam um certo ridículo com uma certa comicidade, mas bem temperadas, e compõem de facto uma dinâmica própria dentro do esquema geral. São tão convincentes que mereciam não ser perdoados na bênção geral que fecha o enredo.




Neste ponto da acção, Ferdinando e Miranda vêem o passado feliz da família. Nem todas as famílias podem recorrer à magia para remendar o passado, claro está. Este amor apressado, engendrado pelo duque legítimo de Milão, é demasiado automático. O noivo cai de imediato, não se percebe bem por quê. Ela ainda se percebe: nunca tinha visto tal coisa, rapaz novo... Aliás, quando vê os outros náufragos, acha todos espectaculares. Este é, talvez, o elemento mais artificial da peça. A parte política do enredo, enfim, sendo uma história italiana e vendo nós hoje o que vemos em política, aceitamos quase tudo... Mas aquele casamento que passadas uma horas já coloca os noivos a jogar xadrez...


Acaba tudo em festa. Se pudéssemos usar magia, também resolvíamos assim os problemas...

No conjunto, há uma parte da história que podia ser História, a parte das traições políticas. Isso dá algum suporte ao conjunto. E, mais do que isso, a encenação é muito inteligente. Consegue integrar o fantástico que decorre da magia sem nos chocar excessivamente, num conjunto de símbolos esteticamente fortes, a começar pela água aspergida por Próspero, elemento da tempestade, elemento de marcação do encantamento. A cena inicial, da confusão que a tempestade provoca dentro do bardo do rei de Nápoles, é quase dança. Os principais traidores, o rei, o duque, os respectivos irmãos, não sendo exuberantes, são credíveis.

Enfim, uma experiência. Um conjunto interessante, uma certa falta de densidade psicológica individual, um teatro fantástico que nem sempre nos consegue transportar. Comparando com a minha referência central, que é a companhia do Teatro da Cornucópia, estes têm mais aparato visual (e isso ajuda, especialmente em textos em que o fantástico pesa) e menos densidade psicológica. Mas é da diversidade que se vive.

(Todas as fotos acima, excepto uma, cuja autoria não consigo identificar, são de Sara Krulwich, The New York Times. Vendo a reportagem de Nova York, notam-se algumas diferenças de encenação para  o que aconteceu em Madrid, em alguns casos com pena minha.)