Eleven and Twelve (11 and 12) é um espectáculo de Peter Brook, uma lenda do teatro, já nos seus 80-e-tal anos mas ainda a voar. O texto de base é o livro de Amadou Hampaté Bâ, Vie et enseignement de Tierno Bokar – Le Sage de Bandiagara (que está publicado na Seuil, colecção Point, 1980), adaptado por Marie-Hélène Estienne e pelo próprio encenador.
Eleven and Twelve foi apresentado, em Novembro e Dezembro de 2009, no Teatro Bouffes du Nord, de Paris. Já foi visto na Polónia e no Reino Unido e vai estar, ainda este ano, na Nova Zelândia, na Austrália, em Macau. Pode ver-se agora em Madrid, no âmbito do Festival de Otoño en Primavera (sala Naves do Español, no Matadero de Madrid).
Trata-se, neste espectáculo, de um questionamento da violência e da intolerância nos tempos que correm, mas a partir de um ângulo que nos surpreende de maneira pouco habitual. É que, magistralmente, partimos “apenas” da história de um homem simples e sábio, mas complexo: Tierno Bokar, que foi mestre do autor do texto. O lado do mundo por onde entramos é África (concretamente o Mali, visto por um homem educado em francês), tão dorida pelo colonialismo como pelas guerras intestinas entre tribos.
Aí, o mundo começa a complicar-se a partir de uma discussão sobre os números 11 e 12, por serem números com um significado teológico muito profundo numa dada cultura tradicional influenciada pelo sufismo (corrente mística do Islão). Rezar 11 ou 12 vezes uma dada oração? Apesar de Tierno Bokar ser completamente partidário da tolerância, para lá de quaisquer diferenças religiosas, daquela discussão nascem tais consequências que o conflito e o martírio vêm a contar-se entre elas. É que, apesar da sua tolerância, Bokar não era partidário do “Maria vai com as outras”: ele queria a discussão e pedia a Deus para, à hora da morte, ter mais inimigos do que amigos a quem tivesse sido indiferente. A procura da verdade pode ser uma procura filosófica, mas também pode ter consequências terríveis. E quem procura, por muito que pratique a tolerância, não pode fugir ao que julga ser correcto e tem de fazer face às consequências e às circunstâncias. Com tanto voo metafísico pela tempestade originado, as ondas de choques irão desde uma remota aldeia africana até às portas das grandes instâncias de decisão na Segunda Guerra Mundial. O que não espanta: se esse mar de ondas continua a abalar-nos a todos...
O espectáculo colhe profundamente nos nossos recursos intelectuais e emocionais, apesar da singeleza de meios com que se reveste. A história, verídica, é-nos servida com uma forma de contar tipicamente africana: com a sabedoria a tocar-nos no ombro pelo lado que menos se espera em cada instante - e com a aparente suavidade da relevância. Do ponto de vista da encenação, só nos é apresentado o essencial, a pequena noz das coisas importantes e intemporais, o núcleo duro da nossa contemporaneidade. Há quem diga, aliás, que há muitos anos que Brook deixou de alimentar a imaginação dos espectadores: vivem do que se lembram do fausto que ele lhes mostrou em tempos, mas que agora já não concede. O trabalho de imaginação deixou de estar no encenador para passar estar a cargos dos seus espectadores. Mas, afinal, nada nos pode enriquecer mais num espectáculo do que ele pedir tudo de nós. E, ao fim e ao cabo, a semente do problema que está em causa neste espectáculo - o fundamentalismo - é só palavras e ideias. Coisas que andam nas nossas cabeças. O sítio onde verdadeiramente toca 11 e 12. Na cabeça e nas tripas, claro.
Ontem foi a estreia em Espanha. Que sorte a nossa...
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Deixo um vídeo da BBC sobre o espectáculo, com Peter Brooks a discutir o seu sentido.